Por que não publicar o livro de Hitler?



O mundo dos livros começa 2016 com uma grande polêmica: publicar, ou não, o livro de Hitler, "Mein Kampf", Minha Luta, que este ano entrou em domínio público. Na Alemanha uma nova edição (crítica) com tiragem de 2.000 exemplares deve ser publicada nessa sexta-feira pelo Instituto de História Contemporânea de Munique, já no Brasil, há previsões de que possa ser publicado a partir de fevereiro numa edição que a Geração Editorial vem traduzindo direto do alemão. Portanto, estamos diante de uma grande polêmica e o debate está estabelecido.

Mas antes de falar sobre isso, vale dizer que esta é uma polêmica na qual o nazista responsável pela maior atrocidade recente da sociedade humana sairá sempre vencedor. Se por um lado, prosperar e vencer a voz dos que defendem que o livro seja censurado, boicotado e de publicação proibida, o triunfo de Adolf Hitler será o de fazer com que a própria sociedade cometa um ato bastante difundido durante seu regime: a queima de livros; por outro lado, se a voz dos que acreditam que independente do que causara, o livro deve sim ser publicado, Hitler vence novamente, e mesmo depois de morto verá sua obra ser propagada, e com isso, todos os riscos que se originam. Porém, retomo mais adiante sobre a questão do publicar, ou não. Primeiro vejamos os reflexos de alguns posicionamentos aqui no Brasil.

Por aqui, o escritor Ricardo Lísias foi um dos primeiros a se manifestar contra a publicação do livro. Segundo o escritor "O argumento de que o livro pode ser liberado porque tem notas de rodapé é patético. Quem disse que nazista acredita em nota de rodapé? Vou dar um exemplo: todo mundo sabe o que a ditadura militar significou para o Brasil, mas essas pessoas vão para as ruas pedindo a volta da ditadura, e, se você argumenta contra, dizem que você está mentindo. São pessoas irracionais, selvagens". Todavia, sem entrar no mérito das palavras de Lísias, cabe ressaltar se por acaso a pessoa já for uma nazista declarada é bem provável que já tenha lido ou, liberado ou não, leria a obra de Hitler. Já o editora Carlos Andreazza da Record publicou um texto bastante equilibrado, focando especialmente o papel do editor "o editor é um mediador, um intermediário de excelência, e uma de suas funções consiste em – diante de um cenário como este, em que o acesso fácil ao livro é um dado inescapável da realidade – qualificar essa difusão, dar-lhe dimensão histórica, massa crítica, o peso cultural do tempo" e complementa focando a questão central deste debate "Se o acesso ao livro de Hitler é facílimo e incontornável, cabe ao editor – do ponto de vista prático – preparar uma edição crítica, comentada, anotada, com a colaboração de historiadores, filósofos e cientistas políticos, que ofereça ao leitor também e fundamentalmente a história de como aquelas ideias terríveis foram aplicadas, e isso inclusive para que tal barbárie jamais se repita" . Em seu artigo, Andreazza ainda finaliza com uma frase que revela todo o peso desta questão,"Que cada um faça suas escolhas – e que arque com as consequências num ambiente de livre iniciativa." Temos então o levantar de algumas vozes sobre o assunto, e, é bem provável que novas vozes irão se levantar nos próximos dias. Por isso, como blogueiro com mais de cinco anos discutindo literatura, escritor anônimo e estudante de letras, também gostaria de elencar algumas questões, e já de antemão dizer que não me enveredarei para o caminho mais fácil.

Como já dito anteriormente, Hitler entra nesse jogo sem correr o risco de perder. Então deixemos ele de lado porque não observarei nesse texto a fonte de Minha Luta (que desconheço e não tenho vontade de conhecer, assim como outros livros) mas sim a questão se devemos ou não censurar qualquer livro que seja, pois essa sim é uma questão muito séria.

Não é de hoje que uma civilização vencedora busca pela supressão da cultura eliminar qualquer resquício dos vencidos. O próprio Adolf Hitler e seu regime patrocinava cerimônias públicas de queimas de livros. No que se diferenciaria censurarmos Minha Luta nos dias de hoje? Não seria jogá-lo também numa fogueira? Logicamente é óbvio que a propagação legalizada desta publicação é para gerar preocupações, especialmente num momento de posições tão extremadas e cada vez mais radicais ao redor do mundo. No entanto, vale mais uma vez o lembrete de que quem deseja ler a obra, terá acesso. Então por que não o fazê-lo de uma forma crítica e que aponte seus disparates?

Além disso, a Segunda Guerra Mundial é certamente um dos mais traumáticos acontecimentos de nossa história, e como já foi dito, é preciso lembrá-la sempre, para que o mesmo não se repita. Portanto, se há um risco em se publicar, o não publicar gera riscos iguais pois todo esquecimento pode ser extremamente perigoso. Dito isto, não se pode negar que tal publicação constitui peça relevante e importante para compreensão de algo acontecido, especialmente para que através disso não se permita acontecer novamente. Do mesmo modo editor algum, autor algum poderá saber o que se fará com seus escritos (mesmo quando há intenções), que interpretações as pessoas farão desta ou daquela obra. Leituras equivocadas do alcorão fortalecem o terrorismo, leituras equivocadas da bíblia geraram e ainda geram prejuízos à humanidade, e ainda há pessoas que imputam crimes sob a influência dos livros, como casos sobre O Apanhador no Campo de Centeio. Enfim, como poderemos proibir algo por aquilo que possa originar? Como se estabelecer parâmetros para proibir a publicação deste ou daquele livro? Penso nessa questão como que se as vozes que simplesmente pregam a não publicação não ventilam a possibilidade de um departamento de bombeiros capitaneados por Guys Montags.

Proibir um livro será sempre temerário. Não é fácil dizer isso, mas para um defensor da liberdade da escrita, até mesmo numa hora dessas precisa seguir pelos caminhos difíceis, e por isso, embora já aponte um pouco de meus pensamentos, creio que é necessário uma reflexão profunda sobre o assunto, e podemos começar pela pergunta por que não publicar o livro de Hitler? e a partir disso juntando razões e contrarrazões tentar se chegar ao veredito final, isso se este for possível.