A Utopia da Paz e o Gigante de Kazuo Ishiguro



Um dos indícios que nos leva a descobrir se uma obra está mais para literatura do que mero produto de mercado é a capacidade de podermos realizar diferentes leituras desta obra. Esse é o caso de O Gigante Enterrado, de Kazuo Ishiguro (Companhia das Letras, 400 páginas). Com uma narrativa marcada pela sensibilidade e pelas metáforas, o autor japonês que vive na Inglaterra desde os cinco anos, aborda neste livro temas como a velhice, a memória, e também os ódios e rancores adormecidos.

Protagonizado por um casal octogenário, Axl e Beatrice, o romance inicia dentro de uma aldeia bretã, a qual passa a excluí-los pelo “perigo” que representam e por tudo aquilo que já não podem mais contribuir com a coletividade. São esses ruídos geracionais, e mais do que isso, tensões relacionadas à produtividade laboral de ambos, que os motivam a iniciar uma jornada até outra aldeia, onde esperavam encontrar o filho, busca essa, que inclusive, poderia render uma outra leitura, aprofundando-se na temática relacionada à morte, o que não é a intenção deste texto.

Com a partida de Axl e Beatrice de sua aldeia a narrativa então dedica-se a ir apresentando a temática relacionada à memória, especialmente a tensão e o anseio causado pela incapacidade de lembrar. Tal incapacidade compartilhada não só pelo casal de idosos, mas também por todos do lugar, é creditada à névoa que há tempos caiu sobre a Bretanha. A névoa da dragoa Querig. No entanto, essa falta de memória nem sempre é plena, e, ao passo que Axl e Beatrice iniciam suas jornadas, veremos que em diversos momentos essa memória se reconstitui como se fosse sendo desfiada diante do leitor quando uma lembrança provoca outra, que provoca outra, que provoca... Além disso, podemos perceber especialmente em Axl uma seletividade desta memória, e o próprio, ao longo da narrativa assume preferir não recordar determinadas lembranças. Axl faz tal escolha porque como o leitor perceberá, não é apenas um velho em busca do filho numa aldeia vizinha. Seu passado está ligado diretamente a essa paz utópica presente concomitantemente com o esquecimento de seus moradores.

Ambientado num interlúdio de guerras, em um período logo após o reinado do mítico Rei Arthur a Bretanha apresentada é dividida por bretões e saxões que convivem pacificamente após a paz imposta por Arthur. No entanto, veremos que esta paz, assim como a memória, pode ser pueril, e como Axl e Beatrice descobrirão em sua jornada, é mantida por artífices que colaboram para o esquecimento. Porém, como veremos no próprio Axl, um homem traído em seus princípios pelo rei que admirava, este esquecimento não é pleno. As lembranças simplesmente estão adormecidas, ou como no caso de Axl, que prefere negar o que fora a compactuar com ações que corromperam seus acordos e que desmistificaram a figura justa e sem falhas de Arthur, serão relembradas mais adiante.

Com isso chegamos ao gigante de Kazuo Ishiguro. O Gigante Enterrado. Este gigante atroz representa a incapacidade da paz entre os povos. Representa os velhos ódios adormecidos, que no livro versam sobre saxões e bretões, mas que poderia ser dimensionado a qualquer outro conflito étnico. Na obra, tais ódios centram a condução da narrativa através de personagens com distintos interesse que revelam-se ao passo que suas memórias são apresentadas ao leitor. Se a dragoa é a responsável pela névoa, vemos a ingenuidade de Beatrice querendo exterminá-la para que assim pudesse se lembrar de todas as coisas vividas com o marido, do filho, uma senhora sem a carga do jogo e das ambições políticas… por outro lado, Sir Winstam vê o fim da névoa como libertação de seu povo, um povo que precisa recordar das atrocidades passadas para repeti-las num futuro esperado. Já o aparentemente senil Sir Gawain tem de defender a dragoa, e com isso sua gente e todo um plano elabaro para estabelecer a paz dos vencedores. Neste momento fica claro o jogo de interesses estabelecidos, e sem grandes esperanças se revela a impossibilidade da paz, como fica claro na atroz revelação de Sir Winstan:

“O gigante, que antes estava bem enterrado, agora se remexe. Quando ele se levantar, como com certeza fará em breve, os elos existentes entre nós vão se mostrar tão frágeis quanto os nós que as meninas fazem nos caules de pequenas flores. Homens irão atear fogo na casa de vizinhos à noite e enforcar crianças de madrugada. Os rios vão exalar o fedor dos cadáveres intumescidos depois de dias de viagem dentro da água. E, quanto mais avançarem, mais nossos exércitos crescerão, inchados pela raiva e pela sede de vingança. Para vocês, bretões, vai ser como como se uma bola de fogo estivesse rolando na sua direção. Os que não fugirem, morrerão. E, de região em região, esta irá se tornar uma nova terra, uma terra saxã...”

E o gigante de que fala o cavaleiro saxão é esclarecido pela figura desenhada pelos valores nobres de um cavaleiro portador de conhecimento e justiça, ainda que Axl tenha renegado a tudo isto. Ele se mostra preciso ao dizer “É verdade, princesa, as palavras do guerreiro me fazem tremer. Você e eu ansiávamos pelo fim de Querig, pensando apenas nas nossas próprias lembranças, tão preciosas para nós. No entanto, quem sabe o que velhos ódios irão libertar nestas terras agora?”. E Axl, talvez por seu passado na corte de Arthur, de certa forma responsabiliza a natureza do conflito quando na sequência diz “Quem sabe o que virá quando homens eloquentes começarem a fazer velhos rancores rimarem com um novo desejo de conquistar terra e poder?” Então, mais do que uma revelação, ao fim, as palavras de Sir Winstam e os questionamentos de Axl soam como uma sentença da impossibilidade da paz. Por mais que a névoa, ou tempo, tenham amenizado as feridas das guerras travadas no passado, elas ainda estavam lá. O esquecimento nesse caso não seria eterno, e ao seu fim, um novo ciclo de lutas e horrores pode ser vislumbrado, como acontece nas palavras do guerreiro saxão. É a paz, portanto uma utopia. Tão frágil quanto a memória, esta utopia rui gradativamente até que todo o cenário seja descortinado pelo leitor. E no caso deste livro, a utopia será destruída por um gigante, um gigante enterrado, mas jamais morto. E o gigante de Kazuo Ishiguro é feito de ódios, rancores, e alimenta-se de vingança. E isso tudo dá à narrativa seu caráter desolador e desesperançoso, como um casal de velhos na iminência da morte e fustigados pela fragilidade do corpo. Assim, O gigante Enterrado ganha vida também nas letras e penetra na alma e na pele de seus leitores, não abandonando-o facilmente.