Compartilho abaixo texto que produzi para disciplina de Tópicos do Português Brasileiro que acho, ficou bem engraçadinho.
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1. Introdução
O presente artigo pretende observar um fenômeno recente dado a
partir da conturbada e questionada mudança política brasileira em
que metade do país passou a gritar “foi golpe” enquanto outra
parcela procurou vender a “normalidade institucional” da nação.
Em meio a essas atribulações políticas, tão logo o Senhor Michel
Temer assumiu a Presidência da República e a presidenta Dilma
Roussef deixou o poder vitimada por um impeachment cuja
história avaliará (inicialmente de forma provisória,
posteriormente em definitivo), o novo governante entre outras
“surpresas” de “ares retrô” como disse parte da imprensa e
confirmamos neste trecho de matéria de O Globo “A chegada do
presidente interino, com uma fala ultraformal, por oras até
rebuscada, estabeleceu um contraste imediato, resgatando uma
linguagem retrô” em seu discurso de posse interina em 12 maio de
2016 Michel Temer fez o uso da mesóclise, ato que para além dos
“foi golpe” e “não foi golpe”, dividiu mais uma vez a nação,
dessa vez sobre o que seria, ou não, um bom uso da língua
portuguesa. Contudo, não pretende este artigo enveredar-se pela
problemática do que poderia ser considerado “bom uso da língua
portuguesa” mas sim analisar os desdobramentos e as repercussões
imediatas a partir deste e de outros discursos em que o presidente
fez o uso da mesóclise, esta integrante das nossas gramáticas que
até então parecia uma ilustre defunta praticamente inexistindo na
língua falada ou escrita contemporânea como poderemos observar no
próximo capítulo.
2. Sobre a mesóclise e sua tendência de extinção
A mesóclise, como vimos na Moderna Gramática do Português
Brasileiro, é uma das três posições possíveis do pronome
átono em relação ao vocábulo tônico, sendo que no caso da
mesóclise é quando está em interposição, ou seja, está no meio
e dá-se apenas no futuro do presente e futuro do pretérito. Cunha &
Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo pouco
dela falam, destacando porém que a próclise encontra-se na
preferência dos falantes brasileiros. Cegalla (2002) por sua vez,
vai no mesmo caminho “a mesóclise é colocação exclusiva da
língua culta e da modalidade literária. Na fala corrente,
emprega-se a próclise”.
Mas ainda que a mesóclise continue presente nas gramáticas (e não
há porque não estar visto que se é importante ter o conhecimento
de todas as possibilidades da língua, bem como sua história),
linguistas apontam para seu desparecimento na língua falada do
português brasileiro. Dentre eles, Câmara JR. (1985) aponta que
“no Brasil, só se encontra a mesóclise na língua escrita
literária, estando banida da língua usual, onde com as formas de
futuro só se pratica a próclise”. No mesmo caminho, em tese de
doutorado, Saraiva (2008) “aponta para a tendência de extinção
do uso da mesóclise, tanto na língua falada quanto na língua
escrita”, sendo que para seus estudos usou o banco de dados do
Projeto NURC, uma base de dados com falantes da língua culta. Ainda
que haja entre os linguistas muitos estudos que apontam portanto para
o caminho do desparecimento ou extinção da mesóclise, vale
ressaltar que há quem, como, por exemplo, Tomanim que defenda
Uma nova concepção de
mesóclise, que não foi banida da fala brasileira, ela foi sim,
re-analisada e se configura de outra forma, ou seja, por meio de um
processo de gramaticalização, a mesóclise resiste no PB falado, só
não aparece no lugar canônico, ao invés de estar à direita do
verbo nuclear aparece agora antes deste.
Com isso temos então o panorama do que até então vinha sendo
discutido no campo da linguagem em relação à mesóclise, o que de
certa forma corrobora o estranhamento e a discussão surgida quando o
presidente do país surge na televisão usando-a. Então para o
“nosso caso da mesóclise” tal panorama serve-nos como auxílio
para as reflexões e conclusões deste estudo que tem princípio lá
no outrora 31 de agosto, como veremos no capítulo seguinte.
3. “O Caso da Mesóclise”
Nas histórias de detetives o problema que dá princípio a ação,
ou seja, a investigação, geralmente é chamado de “caso”, por
isso nestas reflexões chamaremos de “o caso da mesóclise” o
problema inicial dado a partir do discurso do presidente empossado
que naquele 12 de maio disse o seguinte ao discorrer sobre suas
propostas de reformas para o país:
Mas eu quero fazer uma
observação. É que nenhuma dessas reformas alterará os direitos
adquiridos pelos cidadãos brasileiros. Quando menos fosse, sê-lo-ia
pela minha formação democrática e pela minha formação jurídica.
Ao dizer isso em cadeia nacional não era de espantar-se com a
repercussão advinda, visto que, conforme vimos nos estudos de nossos
linguistas não bastando chegar ao governo de forma traumática
Michel Temer apresenta em seu discurso “uma defunta gramatical”
há muito esquecida pelos falantes. Todavia, lembremo-nos que
discursos de grande importância como uma posse presidencial são
estudados e preparados havendo sempre uma razão para qualquer
palavra presente. Nesse sentido não custa lembrar o que diz Bagno
(1999):
A Gramática Tradicional
permanece viva e forte porque, ao longo da história, ela deixou de
ser apenas uma tentativa de explicação filosófica para os
fenômenos da linguagem humana e foi transformada em mais um dos
muitos elementos de dominação de uma parcela da sociedade sobre as
demais.
Portanto, seria um bocado ingênuo pressupor que a presença do
elemento mesoclítico no respectivo discurso lá estivesse
gratuitamente. Poder-se-á ver nisto aquilo que Bagno (1999) reforça:
Nessa concepção nada
científica, língua não é toda e qualquer manifestação oral e/ou
escrita de qualquer ser humano, de qualquer falante nativo do idioma:
“a Língua”, com artigo definido e inicial maiúscula, é somente
aquele ideal de pureza e virtude, falado e escrito, é claro, pelos
“puros” e “virtuosos” que estão no topo da pirâmide social
e que, por isso, merecem exercer seu domínio sobre as demais camadas
da população.
Ou seja, podermos apreender disto que aí está um posicionamento de
atitude bastante clara do Senhor Presidente cuja pretensão é
demonstrar erudição e poder através do uso formal, contudo,
diga-se, não levando em conta o desuso da mesóclise pelos falantes.
Justamente por isso e a partir disso as discussões acaloradas que já
existiam no campo político adentraram o campo linguístico.
Logicamente que em tempos de opiniões divididas houve quem apoiasse
a “linguagem formal” do novo presidente, como o do jornalista
Reinaldo Azevedo beirando a idolatria piegas ao dizer “Um discurso
impecável na forma e no conteúdo: a “democracia da eficiência””.
O Jornal O Globo também já apontara a distinção de linguagens
entre Dilma e Temer “Linguagem coloquial de Dilma é substituída
pelo estilo formal do interino”, Outro a demonstrar certa
“admiração” pela linguagem presidencial foi o jornalista
William Waack que disse “"a gente ficou desacostumado nos
últimos treze anos com o jeito certo de falar" criticando os
governantes anteriores, mas curiosamente utilizando-se da variante “a
gente” de uso popular e em desacordo com as gramáticas normativas.
Todavia, nem todos partiram para a defesa ou devoção “do bom uso
da língua” e talvez uma das reflexões mais lúcidas tenha sido
feita pelo professor e escritor Sérgio Rodrigues em artigo que
concede ao Senhor Presidente a alcunha de “O Homem Pronominal”:
O país passou sem escala dos
anacolutos de Dilma Rousseff às mesóclises de Michel Temer. De um
ponto de vista (digamos) psíquico-gramatical, a mudança faz o
desfavor de sugerir que não há meio termo para o ser brasileiro: ou
tropeçamos a cada passo na desestruturação lógica e sintática,
tentando fazer com que palavras e coisas se encaixem a golpes de
marreta, ou caímos na cafonice bacharelesca que azeita as
engrenagens do discurso enquanto o afasta da fala popular e o torna
marotamente difícil, concebido menos para se comunicar com cidadãos
do que para mesmerizar multidões.
No artigo Rodrigues ainda reflete que
Mais que gramatical, o
problema da mesóclise é de cultura. Faz mais de meio século que os
linguistas sabem disso: colocação de pronomes não é camisa de
força sintática. Depende da fonética, do uso, da história, do
estilo de cada comunidade de falantes. Mesmo assim, os
ultraconservadores insistem em impor a colocação lusitana como
padrão, traço de subserviência cultural que chega a ser
incompreensível, para não dizer imperdoável.
Na escrita do texto tinha o auto em vista não só o discurso de
posse de Michel Temer, mas outra fala, dessa vez durante o anúncio
da equipe econômica em que o então presidente interino dissera
“Procurarei não errar, mas,
se o fizer, consertá-lo-ei” ligando-o intimamente à mesóclise de
tal forma que o blogueiro Renato Riella chegou a dizer em outras
palavras que a mesóclise estaria para Michel Temer o que o Fusca
fora para o governo de Itamar Franco. Contudo, diante das discussões
surgidas por causa de seu uso da mesóclise, o próprio presidente
falou a jornalistas que não as usaria mais, entretanto, “o caso da
mesóclise” havia surgido para a população, e de certa forma o
que pudemos notar conforme o levantamento exposto no capítulo
seguinte é que se passou a usá-la dentro de uma das possibilidades
avaliadas por Sérgio Rodrigues “Também não significa que a
mesóclise seja inteiramente destituída de aplicação
contemporânea: para o humor, como sátira do discurso de um
personagem antiquado ou metido a besta, é recurso muito eficaz”.
4. A Gramática Como Resistência
Chegamos então até aqui trazidos pelo “caso da mesóclise”
observando discussões recentes a respeito deste elemento gramatical
e também nos colocando a par do “problema” ou “motivação”
a levar-nos a pesquisar os recentes usos da mesóclise que surgem
como forma de resistência, sátira e crítica ao processo político
do país através de sua presença em diferentes gêneros textuais e
literários. Para tanto, neste capítulo taremos exemplos que surge a
mesóclise como protesto, e até então, quase extinta passar a
ganhar sobrevida passado do cartum à poesia, dos memes às crônicas,
como a introdução de Antônio Prata em “Sê-lo-ia, Clotilde”
crônica sarcástica e política:
Ai, Clotilde, você viu como
ele fala bem? Elegante. Outra postura, né? É, "adevogado".
E aquela hora que ele falou assim, como é? Ah: "Sê-lo-ia"!
"Sê-lo-ia", Clotilde! Imagina se o Lula ia falar uma coisa
dessas? De improviso, ainda? Você viu os grampos do Lula?! Pra mim
só aqueles palavrões já bastava pro Moro prender. Falta de
educação, né? Não teve berço.
Já o escritor e cronista Gregório Duvivier optou pela poesia para
expor seu protesto ao governo e seu governante em textos que foram
publicadas no site do jornal Folha de São Paulo:
ROUBA, MAS NÃO ERRA
CONCORDÂNCIA
Tirar-vos-ei
os direitos
Roubar-vos-ei
com afeto
Matar-vos-ei
pelas costas
Foder-vos-ei
pelo reto
Bandido bom é bandido
que tem português correto
|
POÉTICA
Chamar-me-ão
de vampiro
De golpista ou morto-vivo
Chamar-me-ão
de mordomo
Ou de vice decorativo
Alguns me chamam de Drácula
Outros usam Nosferatu
Alçaram-me
à presidência
Pra acabar com a Lava Jato
Confessar-vos-ei
meu nome
Antes que eu me vá embora
Meu segundo nome é Temer
Meu primeiro nome é Fora
|
Mas não apenas entre os autores mais famosos registrou-se o uso da
mesóclise em poesias de protesto como podemos ver no registro desta
imagem feita em fevereiro de 2017 em cartaz de coletivo anônimo
colado à parede do Restaurante Universitário da Universidade
Federal de Pelotas:
Do mesmo modo, ao chamar atenção para a mesóclise, Michel Temer
acabou dando campo de trabalho a uma arte bastante satírica como é
co caso dos cartuns e das charges como podemos ver nos próximos
exemplos:
Outra modalidade de expressão, dessa vez, muito utilizada por
internautas, “o meme”*
também encontrou espaço na fala de Temer para postagens críticas
relacionadas ao seu costume de uso da mesóclise, o que faz sentido
observando os memes e suas características apontadas por
Barreto (2015):
Uma
das características dos memes de Internet é seu conteúdo
multimodal,
podendo ser replicado através de textos, imagens, vídeos e links
nos
mais diversos ambientes, como e-mails, weblogs, fóruns de discussão,
redes sociais e outros websites.”
Ei-lo então alguns exemplos do fenômeno que passamos a perceber a
partir da fala demasiadamente formal do Senhor Michel Temer,
ocorrendo portanto uma “nova apropriação” da mesóclise, desta
vez por parte dos críticos do governante que passam a usar desta sua
característica pessoal para produzir críticas numa espécie de
gramática como resistência que abre espaço para as reflexões que
compartilho do capítulo final, o das conclusões.
5. Conclusões.
Não podemos negar que há certo consenso entre gramáticos e
linguistas de que o uso da mesóclise é bastante restrito, seja na
linguagem falada, seja na linguagem literária. Contudo a despeito
quase extinção vale dizer que a encontramos por aí, como por
exemplo, o recente romance de Márcio Paschoal, A Morte Tem Final
Feliz em que há o registro de seis utilizações da mesóclise.
Todavia, até os pronunciamentos do Senhor Michel Temer,
particularmente no uso da fala, tratar-se-ia de algo bastante
esquecido. Este fato então nos leva a uma discussão antiga e
ferrenha entre linguistas e normativistas reacendendo o debate acerca
“do falar correto”, notadamente mais uma vez surgindo aí como
forma de hierarquização social visto que há claramente no uso
deste elemento gramatical a intenção do governante de demarcar suas
posições e ideologias políticas sendo a mesóclise de certa forma
“perfeita” para caracterizar um governo questionado que chega ao
poder retomando pautas conservadoras. Curioso, porém, é que este
elemento que rumava a sua extinção ganha sobrevida justamente pela
apropriação da oposição da “gramática culta” do presidente,
passando a usá-la então como elemento de resistência, sátira e
crítica de tal forma que a mesóclise passa a ser utilizada nos mais
diferentes gêneros textuais, sem falarmos aqui das publicações e
postagens em redes sociais que tornaram-se uma espécie de escárnio
virtual. Todavia, importa observar que de todo modo, conforme
observamos no material coletado para este artigo ainda que no campo
da resistência, o uso da mesóclise como crítica o é feito também
por um público letrado e pertencente às classes mais altas da
sociedade, o que não deixa de ser um material para reflexão, visto
que é provável que em meio a este tiroteio de munição mesoclítica
é provável que nos estratos sociais mais fragilizados este elemento
gramatical continue soando com um “ser de outro planeta”.
Entretanto, não obscurece esta questão o fato de que a partir “do
caso da mesóclise” percebe-se uma retomada de seu uso, e que
caberá ao tempo, talvez também o contexto histórico e político,
postergar por mais algum tempo a existência desta que estava às
vias do desaparecimento mas que agora volta e meia chega até nós
como se dissesse “ei, psiu, estou na UTI, mas não morri ainda”.
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TOMANIN,
Cássia Regina. A Nova Modalidade de Mesóclise do Português
Brasileiro. Revista Digital Curso de Letras – Unemat.
O meme é uma unidade de
transmissão cultural e de difusão da informação, fundamentado na
imitação,
que evolui através dos processos de: (a)
mutação,
ou variação,
ou seja, a capacidade de o meme sofrer pequenas variações cada vez
que é passado adiante pelas pessoas, podendo gerar mudanças maiores
com o passar do tempo; (b) seleção
natural,
ou seja, a habilidade de alguns memes chamarem mais atenção que
outros, permanecendo ativos e sendo replicados por mais tempo,
enquanto outros caem no esquecimento mais rapidamente; (c)
hereditariedade,
ou retenção,
que é o elemento que faz com que um novo meme seja produto da
variação e recombinação de uma ideia original que permanece
presente ao longo das mutações (Dawkins, 1976).