Uma das grandes manias de fĂŁs da ficção especulativa Ă© a de justamente observar entre seus autores aqueles que conseguiram antever no passado situações e atĂ© mesmo máquinas e mecanismos do nosso presente. Nesse sentido, JĂşlio Verne Ă© um dos grandes visionários do futuro, assim como Douglas Adams, Isaac Asimov, Arthur Clarke, entre outros... E nesse seleto time podemos incluir tambĂ©m Ray Bradbury, um dos grandes nomes da ficção cientĂfica que dentre outras qualidades de sua obra, tambĂ©m está a capacidade de observar o presente para delinear o futuro, nem sempre tĂŁo promissor.
É o que ocorre em Fahrenheit 451 publicado pela primeira vez em 1953. No romance distópico o leitor é apresentado a uma sociedade governada por um estado totalitário em que vive o protagonista Guy Montag, um bombeiro que ao invés de combater as chamas, seu trabalho é o de justamente pôr fogo nos livros e nas propriedades dos subversivos. Mas mais do que uma obra sobre a queima de livros, o romance em si aborda a degradação da cultura e também como se é estabelecido o controle através da idiotização das pessoas. Neste campo já surge uma das previsões que é bastante atual.
No livro há os "telões" que funcionam como verdadeiras televisões modernas que tomam as paredes dos lares. Com uma programação alienante são os "telões" utilizados para controlar e manter as pessoas sob o poder do estado. Elas já não saem mais de casa, desconhecem seus próprios vizinhos, e não perdem um único horário da grade de programação como é o caso de Mildred, esposa de Guy. Esta preocupação de Bradbury é interessante visto que a época do livro a televisão ainda engatinhava. Mais do que sua popularização, o autor percebeu o tamanho poder que este meio poderia exercer sobre a sociedade.
Outra "previsĂŁo" deveras interessante Ă© o sabujo mecânico utilizado para perseguir Guy Montag. Vejamos que esse Ă© um verdadeiro precursor de, por exemplo, dos veĂculos robĂłticos detonadores de bomba e seus similares em que o homem faz uso da máquina para as tarefas policiais. A perseguição a Guy, aliás, nos apresenta outras "previsões" como a existĂŞncia dos "reality shows" que Ă© o que acaba tornando-se a caçada ao bombeiro e a prĂłpria televisĂŁo portátil conforme podemos depreender do texto:
"Faber levou Montag rapidamente para o quarto e afastou para o lado a moldura de um quadro revelando uma tela de televisĂŁo do tamanho de um cartĂŁo-postal. - Eu sempre quis algo bem pequeno, algo que eu pudesse esconder na palma da mĂŁo..."
No livro esse aparelho portátil é relevante na fuga de Montag, no entanto, nem só de observações premonitórias televisivas podemos encontrar em Fahrenheit 451, mas outras também bastante assimiladas pelo nosso cotidiano como a identificação biométrica:
"(...) enfiou a mĂŁo no orifĂcio em forma de luva e seu toque foi identificado..."
Mas o mais interessante de tudo e que, inclusive, poderia servir como dica para autores interessados em ficção especulativa Ă© que Bradbury nĂŁo revela qualquer intenção em ser um "profeta literário". A sua ambientação distĂłpica nĂŁo precisa ser explicada e ele tampouco preocupa-se em explicar ao seus presentes o que seriam suas visões futurĂsticas. Ele simplesmente insere suas personagens nesse ambiente e com isso torna-a real. Curioso tambĂ©m Ă© que muitas vezes o autor consegue prever um conceito de futuro mas passa um pouco longe do mĂ©todo como Ă© sua visĂŁo dos serviços bancários:
"Montag saiu do metrĂ´ com o dinheiro no bolso (tinha ido ao banco, que ficava aberto a noite toda, robĂ´s atendendo nos guichĂŞs dos caixas)..."
Ainda que nĂŁo tenhamos robĂ´s nos atendendo, as máquinas de fato nos atendem 24 horas. Enfim, o que pudemos observar aqui, sem entrar atĂ© mesmo nos mĂ©ritos e noutras discussões da obra, Ă© o quanto esta publicação conseguiu antever tendĂŞncias ao criar um universo novo aos habitantes de 1953 que certamente devem ter imaginado bastante distante tudo aquilo descrito por Bradbury. E isso Ă© justamente um dos fascĂnios da ficção especulativa, pois nos contemporâneos seus pode estabelecer a incredulidade e a dĂşvida quanto as possibilidades de o que Ă© tratado ser possĂvel; já aos leitores do futuro, estes, assim como este post, certamente se dedicam a ver acerto e apontar falhas nas especulações, todas elas no entanto, em algum momento acertam, seja com a previsĂŁo do comportamento humano, seja a popularização de máquinas e tecnologias, ambos os tipos de previsões presentes em Fahrenheit 451.