Compartilho neste post ensaio crÃtico que desenvolvi num trabalho para a disciplina Estudos Literários II da Universidade Federal de Pelotas - UFPEL sob orientação do Professor Dr. João Luis Pereira Ourique. Nele observo a obra Que Fim Levou Juliana Klein?, de Marcos Peres e questiono a simplificação de inseri-la na narrativa policial. Para tanto, me servindo dos principais estudos relativos à literatura policial, busquei debater se o respectivo romance está mais para literatura, ou se é de fato, simplesmente narrativa policial. Obviamente, por se tratar de um trabalho acadêmico que buscou observar diversas questões presentes na narrativa de uma forma mais profunda, ele acaba entregando detalhes da narrativa e, portanto, não indico a leitura em caso de leitores que não estejam dispostos a encontrar spoilers (Nesse caso indico que confira minha avaliação feita no listasliterarias.com, pois seu texto é mais disciplinado e não tão longo). Se não for o seu caso, fique a vontade para ler e comentar o artigo. Para finalizar essa pequena introdução para convidar-lhes a ler outros ensaios produzidos por colegas neste link.
***
“O
romance policial tem suas normas; fazer “melhor” do que elas
pedem é ao mesmo tempo fazer “pior”: quem quer “embelezar” o
romance policial faz “literatura”, não romance policial.”
Tzvetan
Todorov
É
preciso observar com bastante cautela a afirmação do professor
Miguel Sanches Neto sobre Que
Fim Levou Juliana Klein?,
de Marcos Peres (Record, 2015, 352 páginas): “(…)
desta narrativa que se vale da gramática do romance policial para
cifrar uma sequência de rivalidades”.
O excerto encontra-se no texto de orelhas com o tÃtulo de “romance
de rivalidades” e
sugere que a publicação trata-se de uma tÃpica obra do gênero
policial. Essa afirmação de que o livro se insere entre os romances
policiais tem recebido a adesão de muitos resenhistas sem maiores
contestações; é o caso EurÃdice Figueiredo que num texto especial
para A Folha de São Paulo atesta “(…)é um romance policial que tem como protagonista Irineu, um delegadoque apura uma série de crimes em 2005, 2008 e 2011 em Curitiba.”;
Seguindo a mesma essa linha de raciocÃnio, o professor Rodrigo
Petrônio diz “(…)Peres se mostra um bom romancista policial que fornece falsas pistassobre o próprio romance” em
texto publicado no site do Jornal Estadão. No entanto, tais
afirmações carecem de reflexões mais precisas e que não se deixem
cair na simplificação de determinar sua inscrição no gênero sem
ao menos questioná-la.
Mas antes de adentrar à problemática em questão, realizemos uma breve contextualização desta obra. Que Fim Levou Juliana Klein? é o segundo livro do autor Marcos Peres, nascido em Maringá – PR, em 1984. O autor estreou na literatura ao vencer o Prêmio Sesc de Literatura 2012/2013 tendo com isso, seu primeiro livro, O Evangelho Segundo Hitler, publicado pela editora Record, romance que tornou-se vencedor do reconhecido Prêmio São Paulo de Literatura 2014. Logo, foi com alguma expectativa que leitores e a crÃtica aguardaram esta sua segunda publicação. Nesta sua nova obra, Que Fim Levou Juliana Klein?, a priori, um olhar menos minucioso pode dar impressão de que realmente estamos diante de uma narrativa policial, meramente. Na superficialidade temos um romance que nos apresenta um delegado, Irineu de Freitas, em meio a uma série de crimes ocorridos em três tempos distintos, os anos de 2005, 2008, e 2011 na cidade de Curitiba, em que ele, de Maringá, é convocado inicialmente para auxiliar no caso do assassinato de Teresa Koch. Tal sequência de crimes envolve uma longa rixa familiar entre duas eminentes famÃlias de imigrantes e intelectuais universitários, os Klein e os Koch; os primeiros, ligados à Universidade Federal do Paraná, e os outros, à PontifÃcia Universidade Católica. É nesse ambiente acadêmico, recheado de aforismos e intertextos que Irineu de Freitas terá de solucionar o caso (ou os casos); até aÃ, realmente nos parece que tudo leva a uma narrativa policial. No entanto, ao longo deste ensaio, a inscrição do respectivo livro no gênero será posta em dúvida ao observarmos o que nos diz as principais teorias da narrativa policial; no caso deste trabalho, principalmente as observações feitas por Tzvetan Todorov sobre “a tipologia da narrativa policial”; a começar pelo que ele diz o trecho seguinte:
“Existe,
entretanto, um domÃnio feliz onde essa contradição dialética
entre a obra e seu gênero não existe: o da literatura de massa. A
obra-prima habitual não entra em nenhum gênero senão o seu
próprio; mas a obra-prima da literatura de massa é precisamente o
livro que melhor se inscreve no seu gênero. O romance policial tem
suas normas; fazer “melhor” do que elas pedem é ao mesmo tempo
fazer “pior”: quem quer “embelezar” o romance policial faz
“literatura”, não romance policial. O romance policial por
excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas o
que a elas se adapta (...)”
Em
suma, poderÃamos depreender do exposto que para Todorov as
contradições entre a obra e seu gênero não seria um problema no
caso da literatura de massa, a própria literatura policial, e, por
isso, tornando mais fácil seu reconhecimento. O trecho também
revela que para o teórico, ou o autor está fazendo literatura, ou
esta escrevendo romances policiais, e que estes, via de regra, não
seriam marcados por inovações, invenções, transgressões, etc…
visto que o
romance policial por excelência não transgride as regras do gênero,
mas sim, apenas se adapta a elas.
Ainda sobre o que Todorov demonstra em seu ensaio sobre a tipologia das narrativas policiais, poderÃamos classificar a narrativa
policial em três tipos: o romance de enigma, romance noir
(ou
romance negro) e o romance de suspense, classificações estruturais
ainda em voga e que constituem os três pilares que demarcam qualquer
estudo a respeito deste tipo de literatura. E que no máximo, são
acrescidos de nomenclaturas mais recentes dadas a subgêneros como o
thriller,
o thriller
jurÃdico,
o
thriller médico...
termos geralmente utilizados por autores norte-americanos. De toda
forma, a distinção entre literatura e romance policial explicitada
por Todorov encontra ecos e afirmações entre alguns autores como
Jeffery Deaver, autor de O
Colecionador de Ossos,
um noir
norte-americano
protagonizado pelo detetive paraplégico Lincoln Rhymes. Em
entrevista a um programa da televisão brasileira ele foi taxativo
“Sempre
quis ser escritor em tempo integral, escritor de ficção comercial.
Não sou um escritor de romances literários, de forma nenhuma”.
Outra observação interessante sobre esta problemática é
apresentado por Sandra Reimão “Toda
narrativa policial apresenta um crime, um delito, e alguém disposto
a desvendá-lo, mas nem toda narrativa em que esses elementos
aparecem pode ser classificada como policial.”
Portanto, a dúvida sobre o que se inscreve ou não no gênero
policial não é incomum, e, não raro, é debatida por escritores e
teóricos da literatura.
Dito
isto, e sem maiores delongas, buscar compreender se Que
Fim Levou Juliana Klein? está
mais para literatura, ou se, de fato, simplesmente se inscreve no
gênero policial é o objetivo deste ensaio que ao realizar essa
observação, também se coloca diante de uma dúvida bastante
persistente que é sobre o espaço da narrativa policial dentro da
própria literatura. Para tanto, isso será feito a partir da
dissecação de importantes elementos da narrativa estudada,
relacionando-os com o que os teóricos têm publicado a respeito do
que alguns poderiam chamar “gramática
do romance policial”, mas
que na verdade nada mais são do que elementos comuns de obras
pertencentes a um mesmo gênero. Então, somente depois disto,
enfim,
construiremos um olhar mais assertivo sobre esta obra de Marcos Peres.
PoderÃamos,
então, aprofundar nossos questionamentos sobre a posição do
respectivo livro em relação ao gênero policial por meio das
exclusões. Ainda que Irineu de Freitas se constitua como uma figura
muito próxima aos protagonistas do que se chama noir,
afinal, sua carreira é posta em risco ao passo que ele envolve-se
emocionalmente com o caso e, assim, acaba sendo afastado de suas
funções; da mesma forma, sua imunidade (inclusive intelectual) não
está assegurada e como outros detetives do noir
ele
toma seus porres e vê-se diante de perigos imediatos; Mas Irineu de
Freitas não está num romance noir,
como podemos confirmar pela afirmação de Todorov:
Nenhum
romance negro é apresentado sob a forma de memórias: não há ponto
de chegada a partir do qual o narrador abranja os acontecimentos
passados, não sabemos se ele chegará vivo ao fim da história. A
prospecção substitui a retrospecção.
Que
Fim Levou Juliana Klein?
Como veremos adiante, constrói-se justamente pela abrangência do
passado, residindo aà a impossibilidade de estarmos diante um
romance noir,
puramente. Todavia, Todorov também indicou uma terceira tipologia ao
romance policial, o romance de suspense, que seria uma espécie de
combinação de elementos do romance de enigma e do noir.
No entanto, não me parece que seria este o caso da obra analisada,
ainda que preserve seu detetive vulnerável. Além disso, o livro
também não guarda semelhanças com as estruturas dos romances
conhecidos como thriller.
Resta-nos
então conferirmos a posição de Que
Fim Levou Juliana Klein? frente
ao romance de enigma, a forma clássica do romance policial.
Todorov
estabelece que o romance de enigma é composto por duas histórias: a
do crime e a do inquérito. Segundo ele, a primeira história termina
antes do inÃcio da segunda, e nesta, na do inquérito, “as
personagens não agem, apenas descobrem”.
Segundo Todorov “essa
segunda história, a história do inquérito, goza pois de um
estatuto todo particular. Não é por acaso que ela é frequentemente
contada por um amigo do detetive, que reconhece explicitamente estar
escrevendo um livro: ela consiste, de fato, em explicar como essa
própria narrativa pode ser feita, como o próprio livro é escrito”.
Então
se o romance de enigma se constitui por duas histórias, como ficaria
Que
Fim Levou Juliana Klein? nesse
sentido?
Acontece
que estabelecer a primeira história, a do crime, de Que
Fim Juliana Klein? não
é uma tarefa muito simples. Há toda uma relação de crimes
ocorridos numa linha temporal que pode confundir ou gerar dúvidas, o
que não é muito comum ao romance de enigma clássico em que
reconhecer sua primeira história geralmente nunca é muito complexo.
Vejamos que, por exemplo, em Assassinato
no Expresso do Oriente, de
Agatha Christie, a história do crime é facilmente identificada a
partir da morte de Ratchett; da mesma forma, no conto “A
Faixa Malhada” de
As
Aventuras de Sherlock Holmes,
de Arthur Conan Doyle, a morte de Julia Stoner é reconhecÃvel como
a história do crime. Em Que
Fim Levou Juliana Klein? a
observação da história do crime é mais delicada e tendo a
estabelecer que esta é o assassinato de Mirna Klein, que se
estabelece em tempo presente (2011). Entretanto, não se pode ignorar
que a segunda história, a do inquérito, é conduzida pelo detetive
Irineu de Freitas, e o fato desta personagem já ter um envolvimento
passado com os envolvidos e com a história do crime causa alguma
confusão para que possamos cravar
o martelo nessa
questão. Tudo isso porque a construção narrativa se monta através
de uma estrutura separada em três anos distintos. Com isso, Irineu
de Freitas ganha vida mesmo em 2005, quando é convocado a auxiliar
no caso de assassinato de Teresa Koch, tendo de deixar então Maringá
para passar um tempo em Curitiba. Acontece que este crime que fora
“solucionado”
passa
a ter fatos
novos a
partir da investigação que ocorre em 2011, de tal forma que
poderÃamos depreender facilmente a existência de três inquéritos.
Esses fatos ainda acabam interferindo diretamente “nos
inquéritos”,
no entanto “Em
sua forma mais pura, essas duas historias não têm nenhum ponto
comum”.
No caso do tempo que transcorre em 2005 há um réu confesso,
Salvador Scaciotto, marido de Juliana Klein, e pouco há para o
investigador fazer, além de envolver-se emocionalmente com a esposa
do “assassino”; envolvimento
este que gerará consequências futuras.
O
terceiro recorte temporal se passa em 2008, com mais um crime, desta
vez entre os Klein, com o sumiço de Juliana e seu provável
assassinato. Este caso, inclusive, resta inconcluso ao final do
romance. Neste recorte de tempo é quando Irineu de Freitas mais se
aproxima de um detetive noir,
agindo por conta própria numa investigação particular e não
autorizada, embriagado e totalmente obsessivo por conseguir comprovar
a culpabilidade dos Koch da morte de seu affair.
Notemos então que o leitor é exigido com um maior grau de
dificuldade quanto a localizar a história do crime do romance. E a
questão é ainda um tanto mais complexa, e mesmo que imaginemos que
os anos de 2005 e 2008 sirvam apenas para o resgate do passado do
detetive e das famÃlias, e que a disposição destes tempos na
estrutura seriam flashbacks,
o
prefácio (do qual falo mais adiante) põe isso por terra ao revelar
“optamos
por dar nomes aos “arquivos” fragmentados, acrescidos de seus
respectivos anos. Com isso, objetiva-se situar o leitor e permitir
que ele escolha outras sequências (talvez até mais lógicas que a
sequência aqui apresentada)”.
Com isso, o autor possibilita a alteração na estrutura da narrativa
por parte do leitor, de certa forma “enfeitando”
a
narrativa. Neste momento, creio que já tenha conseguido me fazer
compreender quanto à dificuldade de estabelecermos a história do
crime. Na verdade, até mesmo essa dificuldade pode ser um tanto
quanto subjetiva e dependerá do nÃvel de conhecimento e exigência
do leitor. Por conseguinte, este tem em mãos diversas alternativas,
podendo, inclusive, vê-la na “série
de assassinatos de burgueses acadêmicos” como
surge na narrativa, ou, então, optando por uma mais especÃfica.
Esses fatores apresentados também distinguem o romance de Peres da
grande maioria dos romances clássicos de enigma. Mas para avançar
este ensaio, vejamos o que mais diz Todorov sobre as duas histórias
que compõem o romance de enigma:
A
primeira, a do crime, é de fato a história de uma ausência: sua
caracterÃstica mais justa é que ela não pode estar imediatamente
presente no livro. Por outras palavras, o narrador não pode
transmitir-nos diretamente as réplicas das personagens que nela
estão implicadas, nem descrever-nos seus gestos: para fazê-lo, deve
passar necessariamente pelo intermediário de uma outra (ou da mesma)
personagem que contará, na segunda história, as palavras ouvidas ou
os atos observados.
Observemos
então a natureza do “intermediário”
que
nos conta a história do inquérito de Que
Fim Levou Juliana Klein?.
Como todo o conjunto da publicação ela apresenta suas
particularidades e complexidades. Primeiro porque logo no prefácio
da obra somos esclarecidos de que o presente romance trata-se de uma
transcrição. Esta transcrição se dá a partir de uma narração
creditada à “pessoa
que insiste em dizer que está no quarto 206” e
que ela “narrou
a maior parte dos acontecimentos deste livro”.
A transcrição é feita pela “psiquiatra
responsável pela transcrição das memórias e sonhos” desta
pessoa. Outra afirmação no mÃnimo delicada é a de que “os
não ditos e delÃrios dessa pessoa – que se recupera de um grande
trauma e só sente conforto em saber que está no coração de um
imaginário quarto 206 – foram confirmados pelos jornais da época
e pelos memorandos obtidos na Delegacia de PolÃcia do Estado do
Paraná”.
Esses detalhes sobre o narrador colocam em xeque algumas das
caracterÃsticas essenciais deste tipo de literatura que é “ser
simples, claro, e direto.”.
Obviamente, “memórias”,
“sonhos”,
“não
ditos” e
“delÃrios”
não
são termos que se caracterizam pela clareza de suas constituições.
Todavia, reforço a impossibilidade da obra ser classificada como
romance noir
visto
que sua estrutura se dá pelo resgate das memórias, e de fatos que
as confirmam, portanto, se dando num tempo passado à narração
(exceto, é claro, se o leitor optar por ler sequências distintas à s
apresentadas) e não concomitantemente como geralmente o é, no
romance noir, e no romance de suspense.
Portanto,
fica claro que o leitor de Que
Fim Levou Juliana Klein? é
conduzido por uma voz dissonante, e acima de tudo, suspeita, pois A
Pessoa Que Acha que Está no Quarto 206 além
de ter sua sanidade questionada, é também uma personagem
irrefutavelmente incriminada. Além disso, embora o prefácio informe
que esta voz apenas narre grande parte dos fatos, em nenhum outro
momento ela distingue o que foi e o que não foi narrado a partir
dessa voz em suspeição. Vejamos que essa escolha já afasta a obra
de Peres do romance de enigma por causa de seu narrador. No modelo
clássico deste tipo de narrativa, em geral os narradores são
figuras insuspeitas, observadoras da ação, “geralmente
amigas do investigador” e
cuja sanidade nunca poderá ser questionada. É o caso de Dr. Watson,
narrador das histórias de Sherlock Holmes, do Capitão Hastings das
de Poirot, ou o de Remo Bellini na série noir
escrita
por Tony Bellotto em que o detetive narra suas investigações em
primeira pessoa; mas certamente esse não é o caso de Gabriela Klein
Scaciotto, a pessoa
que acha que está no quarto 206.
Além disso, para um romance policial, a onisciência da sua narração
é mais um fator problemático. Para Todorov “não
existe observação sem observador; o autor não pode, por definição,
ser onisciente, como era no romance clássico” e
Sandra Reimão reforça
“o narrador onisciente está, por princÃpio, descartado”. Então
o fato da maior parte de sua narrativa ser creditada à Gabriela
definitivamente afasta-o do romance de enigma, porque sua narração
é onisciente. Também não seria exagero algum dizer que o fato desta narração ser em sua maior parte feita por uma personagem
diretamente envolvida com os crimes, ainda sob impacto de fortes
traumas, e por meio de suas memórias e delÃrios, que toda sua
constituição se torna fantasiosa e imprecisa, o que também seria um
problema bastante sério para um romance policial. Ademais, a
transcrição dessa narração acompanha o ponto de vista do delegado
Irineu de Freitas, inclusive penetrando seus pensamentos como vemos
no seguinte trecho:
Olhou
para a estante de brinquedos e viu alguns espaços vazios. Fechou os
olhos: na
mente,
tentou reconstruir o quarto conhecido, o sempre dolorido quarto em
que tudo parecia acontecer, menos a esperança.Retrocedeu lentamente:
os livros estavam ali, o cemitério das barbies, a cama, tudo, tudo.
Mas havia um espaço sobrando, algo que sua memória tinha de
reconstituir. Continuava com os olhos cerrados, lembrando os
capÃtulos e as dores de Gabriela. Recordou o momento em que a menina
lhe pediu para que cuidasse do pai dela; da fúria e dos gritos da
menina que acabara de perder a mãe, e do abraço da doce criança
que acabava de ganhar um Bob Esponja de pelúcia. Sim, o Bob Esponja!
Foi até o cemitério de pelúcias e, com pressa, revirou todos os
restos de brinquedos da menina. A pelúcia não estava lá. Fechou os
olhos novamente, colocou, em sua memória, um objeto amarelo no
espaço faltante: “Sim,
isso, Gabriela havia posto o Bob Esponja de pelúcia naquele espaço”.
E ele não estava ali agora.
Mas agora
Gabriela
odiava o Bob Esponja.
Este
não é o único trecho da narrativa em que podemos confirmar
onisciência do narrador. Partindo de um pressuposto realista da
impossibilidade de Gabriela ter observado tais acontecimentos que
acompanham o ponto de vista do delegado Irineu, e que tampouco tais
fatos poderiam ser escritos a partir das comprovações documentais
descritas no prefácio, logo, Gabriela paira sobre toda a trama como
um espectro capaz de acompanhar tudo o que acontece, ou, porém, numa
avaliação mais extrema, apenas fantasia e com isso constrói uma
versão pouco confiável sobre tudo que está relacionado ao romance,
narrando-nos então uma versão incapaz de convencer como trama
policial. Notemos ainda que no trecho acima é possÃvel suspeitar ou
deduzir que de fato é a voz de Gabriela narrando a passagem,
especialmente se prestarmos atenção na forma condescendente e
carinhosa da narração para com a menina. Num romance, embora todas
as discussões e problemáticas relacionadas aos narradores, essas
considerações talvez não configurasse maiores problemas e no
mÃnimo seriam compreendidas dentro de uma liberdade criativa, no
entanto, para um romance policial, este é uma demonstração
suficiente para justificar a sua não inscrição no gênero. No entanto, não fechemos questão ainda, embora as provas
se avolumem.
Retomemos,
antes, algumas questões relacionadas à história do inquérito nos
romances de enigma. Esse é o plano da narrativa em que as
personagens “simplesmente
investigam e detectam uma ação já consumada”,
no caso do livro, a morte de Mirna Klein, ou o desaparecimento e
suposto assassinato de Juliana Klein, ou, menos provável, a morte de
Teresa Koch, ou quem sabe, o conjunto disso tudo. Percebamos ainda,
que se a história do crime for relacionada à possÃvel morte de
Juliana Klein, teremos aqui mais uma “infração”
ao
romance policial, pois segundo Pires “o
romance policial demonstra que não pode haver crime perfeito, logo,
ilegalismo sem punição”.
Para Todorov, a segunda história, a do inquérito “é
uma história que não tem nenhuma importância em si mesma, que
serve somente de mediadora entre o leitor e a história do crime”, no
entanto,
em
Que
Fim Levou Juliana Klein?, a
segunda história não me parece insignificante, como se pressupõe
na narrativa policial. Na verdade, a impressão que se tem é de que
mais do que investigar o crime, a história do inquérito serve como
porta de entrada para uma “terceira história” dentro da
narrativa, que é contar a história de rivalidades entre as famÃlias
Koch e Klein.
Embora
esta trama de rivalidades nascida em solo europeu entre Arkadius
Klein e Heinrich Koch, e que culmina em solo brasileiro, em pleno
Paraná, quando ganha no mundo acadêmico a alcunha de “Klein
versus Koch”,
ou na Boca Maldita de “A
Praga dos Alemães”, colabore
para a investigação no sentido de entender os acontecimentos do
inquérito, ao mesmo tempo se constitui isoladamente uma nova trama,
ainda que apresentada a partir da ação do detetive e da voz do
mesmo narrador, personagens que originalmente ocupariam o espaço da
história do inquérito. Isso se torna mais visÃvel quando pensamos
que a abordagem das rivalidades não se constituiria em peça
estritamente necessária à solução dos casos ou de uma
investigação. Assim, quanto mais nos dedicamos ao imbróglio entre
estas duas famÃlias, mais nos aproximamos do romance e mais fugimos
do gênero policial. Toda a narrativa reconstruindo as desavenças
entre Klein e Koch tem Juliana Klein como peça central. A
personagem, que em mais de uma oportunidade é indicada pela narração
como “a
protagonista” é
marcada pela forte obsessão relacionada às disputas de seus
antepassados, Ã s teorias de Nietzsche, especialmente a relacionada
ao tempo cÃclico como observamos a seguir:
“Estudei
Nietzsche e aprendi duas coisas. A Primeira é que o livre arbÃtrio
é uma falácia, um argumento covarde dos que não conseguem perceber
que o mundo, para o bem e para o mal, está escrito no passado.
Nietzsche escreveu uma parábola: “esta conversa, os detalhes desta
conversa, o que somos, o que fazemos, tudo já foi feito.” A
história é finita e cÃclica. O Fim gera um novo começo. E se o
passado inevitavelmente se repete no futuro, devemos compreender,
portanto, que o livre-arbÃtrio é um argumento não dos otimistas,
mas dos hipócritas e dos estúpidos, que não conseguem ler o mundo
à sua volta. Assim como na literatura: Montechios e Capuletos, Klein
e Koch, quantos não existiram, quantos ainda existirão? Quantas
vezes um delegado do interior não conversou com a filha de um
estrangeiro, em busca de solucionar um caso? Somos arquétipos
intemporais, Irineu. O que somos, já o foram muitas vezes, e o serão
outras tantas, infinitas”
Nesse
momento, que buscamos compreender Juliana Klein e desvendar o
mistério de seu desaparecimento somos sacados da percepção de um
romance policial para então mergulharmos numa narrativa que propõe
um alerta quanto o perigo das obsessões. É a obsessão, que,
aliás, é colocada acima da própria rivalidade inicial entre as
duas famÃlias, pois longo da narrativa Juliana incorpora amplamente
as teorias nietzchianas a tal ponto que a desavença acaba servindo
tão somente para justificar e convencer quanto a validade de sua
doutrina; Esta, por sinal, é levada ao extremo pela personagem, que
para comprovar sua tese, acaba matando Teresa Koch:
“Juliana
assim que apontou a arma, exortou: “infinitas vezes ergui esta
pistola e infinitas vezes disparei fogo contra você. Neste momento,
eu me torno o que sempre fui.””
Temos
de reconhecer as diversidades simbólicas dessa ação extrema da
protagonista. O ato do assassinato (que é assumido pelo marido,
Salvador Scaciotto) além de representar o ponto máximo e extremo da
crença obsessiva de Juliana na teoria do tempo cÃclico de
Nietzsche é também carregado de forte teatralidade conforme
conferimos no excerto acima. Tal teatralidade, que ocorre certamente
sem ser coincidência, nos camarins do Teatro GuaÃra, é dotada de
uma beleza poucas vezes vista na narrativa policial, como já dito,
marcada por sua precisão, e como dito por Todorov que “o
romance de enigma tende assim para uma arquitetura puramente
geométrica”,
mais próximo da matemática do que da poética. Além disso, cabe
destacar que à Juliana é imputada a doutrinação de Gabriela que
passa a repetir os passos da mãe, inclusive em seus “ilegalismos”.
É
também no terreno das rivalidades que o livro é dotado de extremo
“embelezamento”,
especialmente pela utilização dos intertextos que passam por
Nietzsche, Dante, Sartre, entre outros... A intertextualidade está
tão presente que, por exemplo, Salvador Scaciotto durante seu
julgamento em que é julgado pelo crime que assume para proteger a
esposa trava um debate em que constrói toda sua retórica a partir
de paráfrases que confundem e irritam o promotor. Esta riqueza
polifônica presente no livro também não é muito comum na
narrativa policial, ainda que esta também faça uso do intertexto, mas quando o
faz, o faz geralmente de forma moderada e não tão impactante quanto nesta
referida obra. Por conseguinte, para não perder o foco deste artigo,
cumpre dizer dessa riqueza polifônica e seu contexto de utilização
em Que
Fim Levou Juliana Klein? exigiria,no mÃnimo um novo ensaio, mais especÃfico. Contudo, ao
dizer sobre isso, certamente ajuda a convencer quanto a intenção de
“embelezar”
a
narrativa avaliada.
Então,
ao me aproximar do final desta argumentação, creio já ter
conseguido apresentar elementos interessantes para o embasamento e
formação de um olhar mais amplo sobre a obra Que
Fim Levou Juliana Klein?,
especialmente quanto a busca de respostas para a pergunta que ilustra
o tÃtulo deste ensaio. Percebemos que, mesmo com algumas
similaridades, ao contrário do romance de enigma, não é possÃvel
ver com clareza as histórias que compõe esta narrativa. Além
disso, creio que já pude demonstrar que há intencionalmente por
parte do autor a intenção “do
embelezamento” de
sua obra, e uma espécie de jogo com os limites do gênero. Tudo leva
a crer que Marcos Peres quer de fato impor-nos tais dúvidas, que
podem ser elucidadas tão somente com um olhar extremamente afiado
sobre a obra e, principalmente, destacando os elementos textuais que
podem avalizar nossa opinião e crÃtica. E, ainda que me surpreenda
a facilidade com que muitos têm optado por simplesmente inserir esta
obra num determinado gênero, além do que já foi dito aqui, outras
observações poderiam colaborar para reflexões esclarecedoras.
Vejamos que Que
Fim Levou Juliana Klein? reserva
para seu final um desfecho um tanto incomum para obras do gênero
policial. No epÃlogo a transcrição nos apresenta dois
assassinatos de autoria incontroversa, no entanto, diante da falta de
provas e fatos, aponta para uma solução tripartite estabelecendo
três possÃveis teorias sobre a suposta morte de Juliana Klein.
Aliás, a preocupação em estabelecer uma solução ao
desaparecimento desta reforça a problemática relacionada Ã
história do crime. Notemos que esse tipo de solução, via de regra,
não se faz presente nas publicações clássicas do romance de
enigma; nesse tipo de literatura a solução do mistério é deixada
para as últimas páginas e apresentada com grande expectativa e, de
forma surpreendente, como nos casos de Poirot e Sherlock Holmes,
quando os clássicos detetives podem também demonstrar toda sua
sapiência e capacidade de dedução e elucidação dos crimes
através da reunião dos elementos coletados durante a história do
inquérito. Esse não é o caso do delegado Irineu de Freitas, um
investigador convocado para uma investigação em que é incapaz de
perceber a inocência de um réu confesso. Para piorar, é envolvido
e manipulado por uma personagem que parece deter certo controle de
todas as peças
do jogo; a
partir disso, num paralelo à obsessão de Juliana por Nitzsche, ele
desenvolve sua própria obsessão por culpar aos Koch por qualquer
problema relacionado aos Klein. Aliás, não seria absurdo algum
dizer que Irineu, assim como Gabriela, também acaba sendo doutrinado
por Juliana a odiar os Koch, e repetir assim o universo cÃclico.
Deste modo o investigador cada vez mais se distancia de uma personagem
dos romances de enigma, especialmente quando resolve investigar por
conta própria o suposto assassinato de sua amante. Com sua carreira
em risco (cheio de processos e possibilidade de expulsão) e, não
raro, desfilando bêbado pelas escadarias da Universidade Federal, a
falta da razão, da dedução e até mesmo de uma capacidade
intelectual satisfatória, definitivamente Irineu de Freitas se mostra longe de ser “um
Sherlock Holmes”.
É no máximo um detetive noir
sem
um romance noir
para
habitar.
Enfim,
não é à toa a epÃgrafe deste ensaio na qual Todorov deixa claro
que no romance policial fazer melhor é fazer o pior. Desde o
princÃpio esse pensamento instigou este ensaio, visto a
desconfiança de que Marcos Peres procura “embelezar”
este
romance e, com isso, afastando-se da simples inscrição no gênero
policial. As transgressões ao respectivo gênero são tantas e tão evidentes que, dizer que Marcos Peres com este livro faz literatura
policial é no mÃnimo um engano, lapso, ou simplesmente
desconhecimento das caracterÃsticas comuns à tipologia da narrativa
policial. Todavia, podemos questionar se o que ele faz é de fato
literatura, mas para não acomodar-me em cima de um muro, assumo o
risco de dizer que sim. Incontestável, porém, é defender que não
se trata de romance policial, já que se espera que este apenas se
adapte às regras de seu gênero, o que é bastante comum conforme
conclui Massi em O
Romance Policial do Século XXI “Ao compararmos o romance policial
clássico e os romances policiais contemporâneos, notamos que não
haviam caracterÃsticas inéditas nestes últimos”.
Diante de tudo que se apresentou de Que
Fim Levou Juliana Klein?, penso que ele
claramente não se adapta às regras do gênero policial. Contudo, estabelecer se ele está à margem ou se por ventura constituiria um
novo gênero de livros policiais pode servir de impulso a novos
estudos, o que de modo algum contrariaria a observação de Todorov
sobre a classificação dos gêneros:
“Chegamos
aqui a uma última pergunta: que fazer dos romances que não entram
em nossa classificação? Não é por acaso, parece-me, que romances
como os que acabo de mencionar são julgados habitualmente pelo
leitor como situados à margem do gênero, como uma forma
intermediária entre o romance policial e o romance “tout court”.
Se entretanto esta forma (ou outra) se tornar o germe de um novo
gênero de livros policiais, não será este um argumento contra a
classificação proposta: como já disse, o novo gênero não se
constitui necessariamente a partir da negação do traço principal
do antigo, mas a partir de um complexo de caracteres diferentes, sem
preocupação de formar com o primeiro um conjunto logicamente
harmonioso.”
Para
finalizar, ao observar a obra Que
Fim Levou Juliana Klein? sob
a ótica das discussões da tipologia das narrativas policiais,
aproveito para destacar o caráter interessante da relação entre o
gênero e as obras brasileiras que sustentam a possibilidade de
estudos mais amplos. Um exemplo é que, não raro, há
questionamentos, por exemplo, se Rubem Fonseca, tido como um dos
precursores da literatura policial no paÃs, faz de fato, romance
policial ou literatura. Além disso, Que
Fim Levou Juliana Klein? não
é o primeiro romance nacional cuja culpabilidade ou resolução fica
em suspenso (como é o caso de seu epÃlogo tripartite) na literatura
brasileira. Em A
Faca de Dois Gumes, de
Fernando Sabino, as três novelas que compõe o livro deixam a culpa
em aberto; já A
Grande Arte, de
Rubem Fonseca aborda a culpa e a dificuldade de se apontar culpados.
Ademais, se na literatura brasileira alguns autores, como é o caso
de Tony Bellotto, assumem e escrevem dentro de um gênero especÃfico,
no caso de Bellotto, o
noir,
outros, como o próprio Marcos Peres, ou o jovem Raphael Montes,
autor de Dias
Perfeitos (que
é narrado por um sequestrador com sintomas de psicopatia) embora
publiquem obras consideradas pelo mercado e por alguns leitores e
resenhistas como romance policial, suas estruturas narrativas não
corroboram tal inscrição.
Como exposto em todo este texto, não
podemos simplesmente guiarmo-nos pelas aparências superficiais.
Reforço ainda uma já grifada citação de Sandra Reimão, que
afirma “ser
preciso mais do que um detetive e um crime para estabelecermos que
trata-se de um romance policial.”
Aliás, parafraseando a autora, ouso em dizer que, no mÃnimo, este
romance de Marcos Peres alforria a categoria profissional dos
detetives possibilitando-lhes que habitem outros universos que além
do gênero policial. Encerro dizendo também que não pretendo
esgotar aqui a discussão ou o olhar sobre esta obra, apenas que aqui
foram apresentadas particularidades e especificidades sobre a
respectiva leitura que a torna bastante distinta e única, merecedora
de um olhar crÃtico que perceba a intencionalidade de seu
“embelezamento”, consequentemente sobre o fazer “literatura”.
***
BIBLIOGRAFIA
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Estadão.
DisponÃvel em:
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São Paulo: Compainha das Letras, 2014.
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Melhores histórias de Sherlock Holmes.
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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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Tzvetan. A tipologia da narrativa policial in: ________. As
estruturas narrativas.
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Sandra Lúcia. O
que é o romance policial? Editora
Brasiliense, 1983
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