Compartilho o texto abaixo que produzi como trabalho para a disciplina de Crítica Literária com a Prof. Drª Claudia Lorena da UFPEL. Nele desenvolvo algumas questões sobre a obra A Hora dos Ruminantes, de José J. Veiga. Espero que gostem. Caso alguém ache oportuno citar algo deste trabalho, por gentileza use ERALLDO, Douglas.
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“O relógio da igreja rangeu
as engrenagens, bateu horas, lerdo, desregulado. Já estavam erguendo
o peso, acertando os ponteiros. As horas voltavam, todas elas, as
boas, as más, como deve ser.”
(A Hora dos Ruminantes, José
J. Veiga)
Reeditado em 2015 (Companhia
das Letras, 150 páginas, ISBN 978-85-359-2537-1) para comemorar o
centenário do escritor goiano José J. Veiga, A
Hora dos Ruminantes
foi publicado pela primeira vez em 1966, dois anos após o início do
regime militar no Brasil em março de 1964. A observação deste
contexto no qual foi publicado, via de regra, acaba promovendo
debates sobre as possíveis alegorias presentes na obra, alvo de
discussão para diversos críticos e teóricos. É justamente por
esse campo minado que nos enveredaremos neste ensaio, entretanto, sem
qualquer intenção de ditar certezas e afirmar convicções, mas tão
somente buscar compreender um pouco mais sobre esta respectiva
leitura de Veiga tendo em mente a perspectiva de Hannah Arendt que
nos diz que “toda
obra é um testemunho de seu tempo”.
Mas, para tanto, de forma que não façamos aqui apenas
“sociologia da literatura”,
iremos por princípio observar o que nos diz Antônio Cândido quanto
a possibilidade de compreensão da obra literária:
“só a podemos entender
fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra
em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores
externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a
estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos
necessários do processo interpretativo.”
E que:
“sabemos, ainda, que o
externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como
significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.”
Portanto, o que esperamos ao
longo deste texto não é simplesmente observar as relações do
respectivo livro com seu contexto social, mas buscar compreender como
aqueles anos conturbados influenciaram e se fizeram presente na
estrutura interna do romance A
Hora dos Ruminantes,
realizando desse modo, uma análise a partir de Antônio Cândido:
“Tomando o fator social,
tentaremos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente,
costumes, traços grupais, idéias), que serve de veículo para
conduzir a corrente criadora (nos termos de Lukács, se possibilita
a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento
que atua na constituição do que há de essencial na obra como obra
de arte (nos termos de Lukács, se é determinante do valor
estético)”
Do mesmo modo, concomitantemente
à perspectiva de Cândido, nos permitimos também neste ensaio a uma
leitura alegórica conforme Kothe:
“a leitura alegórica
pretende compreender esse jogo em que um não elimina o outro, mas
inclusive o relembra costantemente. O texto não é mais lido como se
fosse um “em si” (que é o que pretende o conservadorismo
pretensamente científico das correntes “modernas” da
literatura); pelo contrário, a leitura lembra e relembra a todo o
momento que o texto é contexto estruturado verbalmente”.
Notemos que a leitura alegórica
de Kothe dialoga com a observação de Cândido de que o contexto
externo deve se aderir às estruturas internas da obra. Seria esse o
caso de A Hora dos
Ruminantes? Apresentar
elementos relacionados a isso é a proposta deste texto, porém,
antes de partimos diretamente para a leitura da respectiva obra,
observemos então algumas questões acerca do contexto à época da
publicação do romance.
O ano de 1966, o da publicação
de A Hora dos
Ruminantes, está num
setor intermediário do período que compreende de 1964 a 1969 que
segundo Sandra Reimão, época em que “a
característica marcante do panorama cultural brasileiro foi o de uma
paradoxal convivência de uma ditadura de direita com uma ampla
presença de produções culturais de esquerda”, período
que Roberto
Schwars também aponta “Apesar
da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no
país”; por
conseguinte, um período ainda sem o ápice de violência e
recrudescimento da censura impostos pelo regime militar; tanto foi
assim que Elio Gaspari denominou este primeiro momento de “ditadura
envergonhada”,
enquanto os mais irônicos preferiam o termo
“ditabranda”. No
campo da literatura, Sandra Reimão ainda aponta que “na
realidade, entre 1964 e 1968, entre o Golpe Militar de 1964 e a
decretação do AI-5, a censura a livros no Brasil foi marcada por
uma atuação confusa e multifacetada, pela ausência de critérios
mesclando batidas policiais, apreensão, confisco e coerção
física”. Todavia, a
respeito de seu período de publicação e a despeito das próprias
negações de José J. Veiga quanto a presença do fantástico
e
do realismo
mágico em sua obra, A
Hora dos Ruminantes
antecipa uma tendência nos romances brasileiros que se consolidou a
partir dos anos 70 conforme revela Silviano Santiago:
“(...) houve dois tipos de
livros que tiveram êxito durante o período: textos que se filiam ao
realismo dito mágico e que, através de um discurso metafórico e de
lógica onírica, pretendem, crítica e mascaradamente, dramatizar
situações passíveis de censura, e os romances-reportagem, cuja
intenção fundamental é a de desficcionalizar o texto literário e
com isso influir, com contundência, no processo de revelação do
real.”
Ainda que, se de fato talvez não
encontremos em A Hora
dos Ruminantes a
presença do realismo mágico em seu sentido puro, também não se
pode negar que a forte presença do insólito (do
discurso metafórico e da lógica onírica)
numa obra que primeiramente revela a chegada de estranhos à
cidade de Manarairema, para depois ocorrer em sequência uma invasão
de cachorros e de bois, nos permite filiá-la ao realismo mágico do
período do qual fala Santiago. Do mesmo modo, podemos compreender o
romance no que Regina Dalcastagnè define como “O
espaço da Dor” em
sua dissertação sobre “o
regime de 64 no romance brasileiro”;
para ela, sobre o romance pós 64, “o
discurso do poder, as técnicas jornalísticas, a publicidade do
governo, a autoridade da história, tudo é parodiado, estilizado,
reaproveitado no contexto ficcional”.
É o que tentaremos encontrar a partir de agora em A
Hora dos Ruminantes.
Percebemos, pois, que José J.
Veiga nesta primeira parte do livro nos coloca diante dum cenário
bastante sugestivo. Uma população que observa ainda sem compreender
totalmente o significado e a presença dos “homens da tapera”.
Uma relação que não é marcada por nenhuma reciprocidade, e quem
em toda e qualquer aproximação acontecida, se dá pela demonstração
de força, poder e autoridade, mas que nenhum momento são explícitas
a não ser pelas ações e decisões que suas personagens tomam a
partir de então. Temos, portanto, aí já alguns indícios da
metáfora relacionando “a chegada dos homens” e “a chegada do
regime”. Seriam eles, suficientes? Observemos então que as
próximas partes do romance são um tanto reveladoras.
Se tudo o que estivesse
relacionado à chegada dos “forasteiros” a Manarairema ainda
permanecesse um tanto obscuro na primeira parte do livro, “a
chegada”, a segunda parte denominada de “o dia dos cachorros” é
deveras interessante:
“O
derrame de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não
eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir. Mesmo se
fizeram aquilo por simples brincadeira, mostraram completa
desconsideração pelos direitos alheios.”
Então, em “o dia dos
cachorros” as intenções “dos homens” começam a ser
desveladas pelo narrador, e percebamos que surge uma questão
importante, a não observação “dos direitos alheios”, queixa
que surgirá noutras oportunidades. Já, neste momento, as
expectativas são cobertas pela ação que se desenvolve, uma ação
que desencadeia o princípio de violência e coerção dos
habitantes:
“a vaga de pelos, de dentes,
de patas, de rabos, de uivos chegou inteira e logo se espalhou por
toda a parte farejando, raspando, acuando, regando pedras, barrancos,
muros, raízes de árvores, unhando portas, choramingando,
erguendo-se nas patas traseiras para ver se descobriam nas salas
alguma coisa digna de atenção.”
Deste modo, assim como muitos
brasileiros durante o regime pós 64, com a invasão dos cachorros,
as pessoas de Manarairema tiveram de ficar “Fechadas
em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as
pessoas tapavam os ouvidos, pensavam que não conseguiam compreender
aquela inversão da ordem.”
Se por um lado, uma frase como essa talvez não fosse dita na casa de
todos em meio aquele contexto social e histórico ( o do regime de
64), por outro, não se é impossível imaginar qualquer cidadão de
pensamento de esquerda estupefato diante da inversão
da ordem trancado em
casa enervado com os latidos de cães nas ruas, o abandando-se
contra a fumaça de
gás de bombas. Porém, não vamos ainda afirmar nada, tampouco
promover suposições, e retornemos ao efeito catártico que a
invasão de cães proporciona na obra. Se por um momento cogitou-se
qualquer oposição aos cachorros, logo crianças (eis aqui nossos
jovens) eram chicoteadas
pelos próprios pais, pois “a
ordem era respeitar os cachorros”
num tempo que o próprio narrador define como “foi
um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa
memória”.
Mais “interessante” ainda é
que acontecida a invasão, a relação de autoridade se manifesta
novamente com o subjugar da cidade perante “os homens da tapera”
a quem os cachorros serviam. Com o tempo “cachorros
estranhos dormindo nas passagens eram respeitados mais que crianças
ou velhos”. Além
disso, a subjugação perante a autoridade e o poder se afirma quando
“qualquer cachorro
pelado, sujo, sarnento, contanto que fosse estranho, encontrava quem
o elogiasse por qualidades que ninguém via mas que todos
confirmavam”.
Para além dos cachorros, a
segunda parte do livro, retoma a demonstração de autoridade dos
“homens da tapera” sobre os habitantes de Manarairema. Amâncio
continua a defender “os forasteiros” perante as queixas dos
manaraireenses, ampliadas após a invasão dos cachorros, enquanto se
estabelece o conflito entre Manuel Florêncio com “os homens”
após negar-se prestar um serviço a Geminiano, consequentemente,
“aos estranhos”. Ainda que desconheçamos os argumentos de
persuasão “dos homens” o medo impingido em seus “apoiadores
locais” é tanto que Geminiano praticamente implora ao amigo que
faça o serviço. Contudo, a negativa permanece e ganha contornos de
conflitos políticos ao que “os homens da tapera” recorrem a
Amâncio, já numa posição de lacaio, que interceda junto a Manuel
Florêncio. E talvez a chegada “do homem” à conferência
reservada seja um dos momentos mais reveladores do livro no sentido
de confirmar suas alegorias a 64 ao passo que Amâncio saúda-o:
“Grande
Honra! Dê as ordens major.”
Se até então tínhamos pouca
convicção da alegoria (o que não é o caso aqui), esta saudação
utilizando de uma patente militar para receber um “forasteiro” é
elucidativa. Ainda, como efeito de tal conferência reservada, vemos
aumentar a pressão sobre Manuel Florêncio para que faça o serviço
para os “homens da tapera”. Amâncio, no papel de interlocutor,
deixa veladas as ameaças “está
brincando com fogo, Manuel. Os homens estão por aqui com você”.
Mas, ainda assim, Manuel não se convence facilmente, insiste em
negar-se a reformar a carroça “para os homens da tapera”.
Perante a insistência de Amâncio, redargui “Ora
essa! Em que terra nós estamos? Onde estão os meus direitos? Quem
não deve não teme”
ao que Amâncio lhe devolve com uma frase que poderia ter sido dita
por qualquer cidadão brasileiro durante o regime pós 64:
“Aí é que está o seu
erro. Você fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que
direitos! Quem não deve não teme! Tudo isso já morreu. Hoje em dia
não é preciso dever para temer. Por que é que você acha que eu
estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu devo alguma coisa?
E você já me viu com medo algum dia? Você precisa entender que não
estamos mais naquele tempo...”
Sob diferentes aspectos essa
passagem do romance se mostra interessante. De um lado temos a
compreensão de José J. Veiga dos dicotômicos pontos de vistas que
surgem diante de um regime autoritário sustentado pela força e pelo
medo, e, por outro, interessantíssimo, aliás, Veiga antecipa algo
que também vai caracterizar parte de nossa sociedade durante o
regime militar. Se por um lado temos pessoas como Manuel Florêncio
que tentam reivindicar seus
direitos, por outro,
há pessoas que embora não desconheçam as injustiças, a opressão,
o autoritarismo, fazem como Amâncio Mendes, embora reconhecendo a
gravidade da situação, mas, em vez de opô-la, simplesmente adere a
ela de forma servil e resignada como ainda confessa Amâncio “hoje
a gente pensa até para dar bom-dia. O que fizemos para acontecer
isso? Manuel, estamos mal.” Aliás,
tais
passagens dão
a Amâncio uma complexidade maior, e com isso contradiz Luiz André
Nepomucemo que afirma sobre a personagem
“O melhor exemplo de entrega
do indivíduo aos apelos de uma ideologia totalitária, na obra de
Veiga, é Amâncio Mendes, de A hora dos ruminantes. Sem qualquer
escrúpulo, alia-se aos homens da tapera, seduzido pelas novidades
propagadas sobre progresso e modernidade, e passa a servir. É o
exemplo de um simples exercício de poder como uma espécie de
interlocutor entre os homens e sua comunidade.”
Ao
Amâncio apresentar conflitos internos, mesmo que cedendo aos “homens
da tapera”, não vejo nisso uma entrega sem qualquer escrúpulo e
reflexões. Por
fim, Manuel Florêncio também é convencido a ceder à vontade dos
“homens da tapera”.
Mas
a segunda parte do romance reserva outros acontecimentos
interessantes quanto ao controle “dos estranhos” sobre os
“nativos” e o exemplo de resistência mais persistente tem começo
justamente com a “subversão” do jovem Mandovi diante dos
“estranhos”.
Pois
não deixa de ser curioso que é justamente o jovem vendedor de pé
de moleque a resistir aos desmandos dos “homens da tapera”
pondo-os a correr atirando neles pedras, paus, sabugos… De certa
forma há aí um contraponto estabelecido entre como os homens mais
velhos tentaram lidar em situações semelhantes, na conversa, no
diálogo, enquanto o jovem contrafeito parte para a ação física
diante da raiva e da insatisfação com o ocorrido (a tomada de seus
doces). Todavia, é preciso ressaltar que, embora o medo presente em
todos os outros da cidade por Mandovi, o menino encontra em sua
família o apoio marcado pela forte resistência de seu pai,
Apolinário, um dos poucos em Manarairema obstinado a não ceder aos
“desmandos” dos “forasteiros”. Nessa disputa, entre vizinhos
que tentam convencê-lo a desculpar-se e uma esposa preocupada com a
reação “dos inimigos” é ela que propõe algo que iria se
tornar uma constante durante o regime, o exílio, “a
gente podia passar uns dias no sítio de meu irmão até a calma
voltar”.
Estabelecida então a resistência por parte de Apolinário, mais uma
vez vemos que os “homens da tapera” assumem uma
posição
de autoridade a serviço de uma intencionalidade movendo um conjunto
de peças a fazer com que Apolinário ceda. Amâncio é certamente um
dos principais interlocutores e seu armazém local de acontecimentos
também sugestivos, quando “os forasteiros” vão à cidade a fim
de resolver a querela. Neste ponto, difícil não aceitar as
referências apresentadas pelo narrador quando da ordem de chamar
Amâncio “os
três informantes levantaram-se a um só tempo”.
A definição dos interlocutores como informantes parece-me bastante
específica e intencional. Contudo, a referências possíveis só
aumentam ao passo que Amâncio Mendes precisa jogar o mais duro
possível para intermediar o encontro entre “os homens” e
Apolinário. Tal encontro é tido como um “interrogatório” e a
coisa toda se desmascara quando um dos “homens da tapera” diz
para o outro:
“você está cansando o
depoente sem
nenhum proveito prático. Em vez de entrar logo no assunto, fica
ciscando.”
Não
podemos negar mais as semelhanças com muitos atos de interrogatório
acontecidos durante o regime militar. Mais do que isso, ao que os
“homens” utilizam o termo “depoente” para se referir a
Apolinário, parece-me claro a situação, a condição e a definição
de quem é quem naquele ato. Além disso, é no princípio deste
“interrogatório” que “os homens” explicitam uma visão
compartilhada com o próprio José J. Veiga a respeito do regime de
64 ou da presença deles em Manarairema “sim
senhor, seu Apolinário, nós estamos aqui de passagem. Mas de uma
hora para outra podemos resolver ficar”.
É imperioso notar aqui que a frase antecipa o último parágrafo do
romance (em epígrafe) apresentando uma esperança de que tudo aquilo
seria algo passageiro. Essa frase, em epígrafe, aliás para muitos
críticos de Veiga se situa dentro de um otimismo que não se
concretizou. A respeito disso, duas coisas importantes devem ser
ditas, uma é que de fato Veiga, ainda que em 1966, acreditava que o
regime não seria longo, outra é, ainda que estudiosos como Gregório
Dantas questionem a obra de Veiga como simples alegoria panfletária
do regime de 64, o próprio autor estabelece essa relação como essa
resposta dada ao “Webdiario”
quando questionado sobre “seu otimismo” no encerramento de A
Hora dos Ruminantes:
“Ah, foi. Disseram isso a
propósito do final do livro A hora dos ruminantes. Eu não
acreditava que aquela ditadura tivesse condições de durar muito.
Achei que ela ia se dissolver. Demorou muito mais do que eu esperava.
Em A hora dos ruminantes, eu pensava que ela ia ser curta. Por isso
aquele final otimista. Os ruminantes foram embora, deixaram a sujeira
aí, mas a gente limpa. O relógio da igreja, que estava parado há
muito tempo, enguiçado, foi consertado, bateu horas, todo mundo se
animou. Fui muito criticado por alguns, que me acharam muito
otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de
reis barbudos, livro no qual a repressão e o esmagamento chegam ao
auge. Mas no fim, pensando bem, a ditadura acabou como está em A
hora dos ruminantes: saiu pela porta dos fundos, não foi? O
Figueiredo nem entregou a faixa ao Sarney, saiu pelos fundos,
desmilingüiu como os ruminantes. Até hoje ninguém sabe direito
como foi. Simplesmente foram embora. Viram que não estavam
agradando. (risos)”
Além
disso, não somente em relação ao regime de 64, o encerramento da
obra apontando que “As
horas voltavam, todas elas, as boas, as más, como deve ser”
mais do que simples otimismo soa como uma crônica da fragmentada
construção histórica da nação brasileira, que antes de 64 vinha
de um breve período de “liberdade democrática”, mas o que não
significa falta de conflitos e confrontos políticos, vide a própria
“Campanha da Legalidade”. Por isso é bastante compreensível que
diante de um novo regime autoritário, ao observar nossos momentos
históricos, o autor não se furtaria de dizer “tudo passa”. Só
que como o próprio Veiga assume, “as horas” estenderam-se mais
do que ele imaginava.
Contudo,
retomando a segunda parte do livro, ela encerra ainda com uma espécie
de meio termo de acordo entre “os homens da tapera” e Apolinário,
e por fim, nos deparamos com mais uma subjugação, a de Nazaré,
cooptada para “prestar favores” aos homens do acampamento
enquanto seu namorado Pedrinho é escurraçado do lugar, e de um modo
pouco amigável.
Portanto,
se numa primeira parte “a sociedade” é colocada diante de uma
nova situação, uma verdadeira “inversão da ordem” em que os
poderes trocam de mãos, e há de certa forma em todos um misto de
paralisia e curiosidade diante da “nova realidade”, na segunda
parte as intenções se revelam e a autoridade e o poder caem por
sobre todos de distintas formas. A invasão dos cachorros, certamente
acua, estabelece o pânico e o medo, mas acima de tudo, está nas
ações “dos homens da tapera” e de seus interlocutores o
estabelecimento desta nova “ordem”, a subjugação do povo de
Manraireima diante dos homens que vez por outra são tratados por
patentes militares, praticam interrogatórios, intimidam moradores e
depoentes. Vejamos, por tanto, que assim como diz Cândido, já é
possível perceber que o contexto social se enraíza nesta obra em
suas entranhas estruturais. O externo se internaliza através das
alegorias e das metáforas. Portanto, ainda que façamos um
importante parêntese como alerta Nepomucemo “(…)
cumpre repetir que as análises restritivas da obra de Veiga, que a
têm identificado com panfleto contra a ditadura militar no Brasil,
devem dar espaço a possibilidades mais amplas, em que a violência e
o poder como um todo se expandem para um universo além dos limites
da política e dos aparelhos do Estado”
é inegável perceber como a obra se engendra na estrutura de A
Hora dos Ruminantes,
posição já corroborada pelo autor, que inclusive reconhece seu
erro sobre a duração e “a mão pesada” do regime, e por isso dá
sequência ao tema em A
Sombra dos Reis Barbudos.
Mas ainda não terminamos aqui a análise da obra, pois ainda nos
resta observar a terceira e mais violenta parte do
livro,
“o dia dos bois”; uma espécie de reconhecimento “inconsciente”
do autor e destruição total de seu propalado “otimismo”. É,
pois, esta parte a que talvez mais possibilite argumentos contra a
“simples
alegoria”
ao regime de 64, afinal, estávamos ainda na “ditabranda”,
quem sabe, ainda no “dia dos cachorros”. No entanto, aqui
estamos muito mais diante do olhar afiado de um autor que observa sua
realidade, a relê e a transporta para o coração de sua obra. É
nesta humilde opinião, “o dia dos bois” quando José J. Veiga
aproxima-se de autores “proféticos” como George Orwell, Aldous
Huxley e Julio Verne, trabalhando com cenários existentes
reconstruindo probabilidades que acaba por se
confirmar.
Vejo nessa última parte do livro uma antecipação do
recrudescimento do regime a partir do “AI-5”. Com a invasão dos
bois, Manarairema é tomada pelo medo, pelo horror, pela violência.
Das páginas saltam os sentimentos de opressão causados por uma
população, que parte é pisoteada pelos ruminantes, parte é
prisioneira em seus próprios lares. No meio desse caos
“as pessoas mais ponderadas procuravam acalmar as outras explicando
que, se o presente era negro, a longo prazo a libertação era certa:
tantos bois juntos não tinham condições de ficar por ali por tempo
dilatado”;
Percebamos nesse trecho como misturam-se as vozes de autor e
narrador. Percebamos também como aqui o otimismo não é assim
exacerbado. Se o auge da violência e opressão acontecem nessa parte
do livro, novamente José J. Veiga coloca nos jovens certo
protagonismo. São eles que se aventuram e se arriscam por entre bois
numa cidade sitiada. Nessa parte, o ciclo também se encerra
(otimismo, diriam uns), mas como o próprio Veiga demonstra, um fim,
mas não sem deixar alguns estragos e traumas. Enfim
os “homens da tapera” vão-se embora, vão-se também os bois
enquanto o relógio da igreja range novamente. Terminada a leitura de
A Hora dos Ruminantes, sem qualquer prejuízo podemos concordar aqui
com Nepomucemo sobre como observa a obra de Veiga:
“um painel complexo sobre a
inserção da violência no quotidiano das pessoas já estava
perceptível em seus primeiros livros. A utilização de tramas em
que o sujeito social se torna cúmplice de uma violência consentida,
que é mais sutil do que efetivamente repressora, revela o quanto
Veiga já se filiara a essas indagações específicas. Quaisquer que
sejam as ordens de um poder invisível, a resposta a ele é sempre a
mesma: “fazemos o que nos mandam.””
Encerro
nossas observações sobre este interessante livro não desejando
fechar outras possibilidades de leituras, tampouco decretar quaisquer
afirmações peremptórias que qualquer bom retórico pudesse
desconstruí-las. Porém, vemos muita validade sim na observação do
romance e suas relações com o regime de 64, ainda que hajam muitos
questionamentos, e alguns bem argumentados. Também é preciso dizer
que num mundo em que não resolvemos nossos problemas sociais e
históricos
por todo o globo terrestre, certamente poderá encontrar ecos noutros
lugares, noutros tempos. Enquanto isso, mais “otimistas” que o
próprio José J. Veiga, ainda aguardamos por um relógio em que a
utopia permita ter apenas “as
horas boas”.
***
BIBLIOGRAFIA
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J. José. A Hora
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São Paulo, 2015.
________.
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Tags:
Ensaios