A quixotesca jornada literária de só faltou o título, de Reginaldo Pujol Filho



    Se a luta de Dom Quixote era contra moinhos de vento, em só faltou o título, de Reginaldo Pujol Filho (Record, 322 páginas) a luta de Edmundo Dornelles é contra todo o sistema literário nacional, e, quem sabe, contra ele mesmo, e contra todos, visto que o personagem se encastela dentro de uma realidade que é só dele, e, com isso cria uma obra que é um verdadeiro mergulho numa mente perturbada e frágil. Formado em direito, mas revisor freelancer de obras literárias e artigos acadêmicos, o narrador (e protagonista) acalenta o desejo de tornar-se um escritor renomado, e nisso já evidencia certa megalomania diante da certeza de estar acima de qualquer outro escritor nacional e inserido no panteão dos grandes nomes da literatura. No entanto, enquanto se dedica a escrever seus romances e a seu contragosto revisar originais, estes, em sua visão, de péssima qualidade, a possibilidade de efetivamente vir a ser escritor é cada vez mais distante. Contudo, esse desejo de publicar seus livros é apenas um detalhe na complexa constituição desta personagem.
   
Antes de mais nada, é preciso ter em conta que este narrador tem um olhar incomum sobre o mundo. Em determinados momentos há uma cisão total com a razão e Edmundo perde-se em devaneios, talvez na própria loucura. Desgostoso com o mundo, Edmundo observa-o apenas em seus erros, ou, no que ele aponta como erros. Isso se apresenta no olhar rancoroso para com a estrutura do mercado editorial, ou então na forma como vê a própria família, inclusive a própria esposa, Babi. Na verdade, seria fastioso ler o romance não fosse a técnica utilizada pelo autor que por meio de documentos de testemunhos dá um tempo na inserção na mente de Dornelles e nos mostra olhares externos de outras personagens sobre ele. A inserção destes testemunhos, inclusive desmontam a autoria plena de Dornelles, visto que a narrativa se compõe não apenas pela narrativa pessoal da personagem, mas também com esta composição que flerta com a narrativa policial vendo no crime uma possibilidade de atração de leitores, além, é claro, do fôlego que representa à narrativa em primeira pessoa. E nesse todo, se reforçam as opiniões do leitor a respeito do personagem-narrador, especialmente quanto sua dificuldade de convívio social.
    Acontece que Edmundo Dornelles é um indivíduo com sérios problemas. Sua visão sobre o mundo é bastante particular sendo permeada por certa megalomania. O escritor se coloca num pedestal acima de tudo e de todos, despejando a cada nova página seu desprezo para com o mundo e quem nele habita. Se a família não lhe serve por ser esnobe e de classe média, ele, por outro lado, também odeia e escracha o populacho representado na forma com que observa seus companheiros de bar, no Tinoco (diga-se de passagem, único lugar em que ele é aceito). Com a esposa Babi, então nem se fala, para ela sobram apenas palavras de ojeriza. Contudo, Dornelles, embora escarneça tudo com as palavras, nas ações, pouco faz para mudar. Na verdade, o que vemos é um sujeito com muita dificuldade de convívio social, alguém que não encontrou um único espaço sequer no mundo e só ganha certa vida ao estabelecer seu plano quixotesco de tornar-se um escritor.
    Rejeitado pelo mercado editorial, cujos originais não são aceitos pelas editoras, Dornelles não consegue aceitar com facilidade essa negativa, afinal, ele sabe “da pobreza deste mercado” e como “sua obra é muito melhor do que qualquer original que revisou”. Neste ponto, vale dizer que o livro faz uso dessa voz perturbada para em determinados momentos tecer uma série de opiniões a respeito da produção literária contemporânea no Brasil. Em meio ao discurso desequilibrado de Dornelles, algumas críticas surgem, e, ainda que falte autoridade ao narrador para fazê-las, ali estão elas para julgamento dos leitores. Todavia, ainda que de forma exagerada, não podemos negar alguns apontamentos feitos pelo protagonista. Mas para retomar o foco deste parágrafo, voltemos ao plano estapafúrdio de Dornelles para num ato dotado de certa vingança provar aos editores sua capacidade de criar uma narrativa verossímil, e, principalmente capaz de agradar ao “execrável desejo do mercado por obras biográficas”.
    É nesse instante que a obra se toma completamente de ares quixotescos. Nessa altura do romance o leitor já possui ciência da presença de um crime na narrativa (como disse, as sessões de testemunho), mas leva um tempo até lhe ser revelado a natureza doentia do plano de Dornelles. Disposto a provar sua a capacidade a todo mundo, mas que no entanto, um mundo que desconhece completamente suas intenções. Numa jornada vertiginosa à destruição total de sua convivência social, a ligação do escritor com o mundo real se rompe quase que totalmente ao passo que ele tenta provar a todos que é capaz de criar uma história no qual todos acreditem. Contudo sua tentativa de “salvar a literatura brasileira” é o mesmo que lutar contra moinhos de vento. Ele luta com inimigos imaginários que sequer consideram sua existência. Obcecado com seu plano, ruem todos os laços que restavam-lhe de alguma sanidade.
    Por fim, temos uma jactância dos loucos, pois só eles são capazes de compreender o que fizeram. Parece-me o caso de Edmundo Dornelles que regozija-se ao ver que seu plano enfim dá certo. Ou não, afinal, não há indícios da publicidade de sua narrativa. Quiça seria uma história em que apenas ele conhece, enquanto o resto de seu mundo permanece alheio a sua condição de autor, narrador, personagem, como somos comunicados no epílogo do livro. Enfim, podemos dizer que só faltou o título se constrói a partir de uma personagem que tem se tornado típica da literatura brasileira contemporânea (eis mais uma falência de Dornelles, ele é o que muitos já foram): escritores (ou postulantes), que almejam um olhar diferente sobre o mundo, que precisam publicar algo, geralmente de esquerda, nascidos em ambientes acadêmicos ricos em intertextos; porém, Dornelles se revela com bastante originalidade ao passo que é um narrador dono de uma voz, que se lhe falta autoridade interna à obra, sobra-lhe autoridade externa, pois é constituída de uma riqueza de nuances que exige estudos mais aprofundados sobre a obra. Além disso, é um livro de vigor e com sentido, e mesmo com todos os ares quixotescos nos apresenta um cenário reconhecível, ainda que por meio de um olhar nublado que é o de Edmundo Dornelles.