Essa chama piromaníaca que teima em arder



Em 2017 durante minhas atividades de estágio na universidade tive a oportunidade de organizar e ministrar dois cursos de extensão com a proposta de debater totalitarismo e autoritarismo a partir da perspectiva literária. Foram duas turmas bastante heterogêneas e debates partindo de distopias à democracia e censura. Num dos encontros realizados a discussão proposta seria censura à literatura, e para tal, parti de uma experiência metodológica interativa. Com a imagem e sons de uma fogueira a crepitar, os participantes foram questionados se haveria algum livro que desejariam levar à fogueira e por quais razões?

Por mais descabida que possa parecer a pergunta, analisemos antes um pouco dos contextos. Desde 2015 e auge em 2016, o Brasil é rachado por uma polarização política. 2017 é o primeiro anos pós-golpe e um a anteceder as eleições. Censura e autoritarismo estão de volta em nosso radar e as perspectivas não são nada promissoras. Contudo, estávamos em um pequeno grupo, e embora heterogêneo, formado preponderantemente por mentes progressistas ou revolucionárias. Geralmente pessoas que noutras oportunidades haviam manifestado-se contra arbitrariedades, contra censuras e todo tipo de repressão. Isto em princípio poderia levar-me a crer não haver uma única alma na sala disposta a queimar livros. O resultado foi de alerta. Ainda que com certa timidez inicial de repente alguém levou um José de Alencar para a fogueira em razão de seu destino para com as personagens femininas. A Bíblia, então, foi torrada. Eu tinha material para o debate e discussão, mas para além disso, um alerta do quão forte é a chama piromaníaca que teima em arder. Se mesmo num grupo propenso à democracia e à liberdade tínhamos a possibilidade de comportamentos autoritários, isso queria dizer um bocado de coisas. Acima de tudo o quanto ainda estamos longe de de fato dialogar e aceitar o pensamento discordante. O trabalho seguiu sendo problematizado com a leitura de Fahrenheit 451 e as experiências de censura aos livros no Brasil. Encerramos as atividades e não seu o quanto o debate resultou junto aos participantes de reavaliação e ponderação sobre o assunto. Quanto ao Brasil, seguimos cada vez mais polarizados e cada vez mais indispostos a conviver com o discordante.

Então, dias desses resolvi reproduzir a experiência dos pequenos grupos dos projetos de extensão em grandes grupos formados por postulantes a escritores que participo no Facebook. Em geral esses grupos tem muita auto-promoção ou bate-bocas de senso comum, mas sempre é possível encontrar debates interessantes neles [os grupos provocados pela questão reúnem cada, dezenas de milhares de integrantes]. Resolvi reproduzir a provocação de minhas aulas de extensão nesses grupos. Talvez mais alarmante que em minhas aulas é que nestes grupos os participantes escrevem ou pretendem escrever livros. Ainda assim, a chama piromaníaca mostrou-se ardente. Mesmo possíveis ou futuros autores declararam possibilidades de se jogar livros à fogueira.

Entre os que responderam [foram dezenas de comentários] foi possível distinguir entre três a quatro grupos. Os que levaram a hipótese na brincadeira "Nunca. Bem, talvez "Cálculo Avançado" merecesse uma fogueira ritual depois de fechar a matéria", ou conjeturando que numa nevasca até que se pensaria no caso. Os que não viram sentido algum na pergunta. Os dispostos a acender os fósforos e os conscientes do quão grave é uma sociedade que se dispõe a queimar livros.

Falemos primeiro do grupo, o mais preocupante. Os piromaníacos do pensamento. Os que por uma razão ou outra não veem problema algum em levar livros pra fogueira. Curioso e um tanto melancólico que nestes tempos de polarização e autoritarismo a oposição ao avanço da extrema-direita deveria vir com práticas diferentes, mas não. Não foram poucos os que ameaçaram às chamas livros de direita que recentemente influenciaram nossa política. Não se pode, principalmente por ética pessoal combater o mal com o mal [ainda que aqui não se faça esse tipo de julgamento de valor]. Tão medonho quanto as fogueiras nazistas de 33 ou as fogueiras anti-comunistas da era vargas e da ditadura militar seriam as fogueiras propostas por alguns para as obras de Olavo de carvalho. Ele rivalizou com a Bíblia no quesito de atiçar a sanha piromaníaca de debatedores virtuais. Na lista dos possíveis queimáveis Mein Kampf, os das listas de mais vendidos, os do Edir Macedo, para alguém "todos os livros sagrados". Aos dispostos a queimar livros, sempre em frases curtas e com a sugestão feita, sem muita argumentação sobre os motivos para queimá-los, motivação esta sempre escondendo de forma embutida que a pessoa disposta para tal achava de algum modo sua sugestão danosa e deveria ser queimada. Mas não só estes, foram para a fogueira tantos outros, afinal a disposição ou intenção de queimar, por si só já é mais que brasa ardente. Felipe Neto também foi lembrado pelos pares e, assim como em meu curso de extensão, tivemos a justificação semelhante para os "que impõem comportamento submisso a mulher. E não me refiro aos de ficção". O Capital, também foi para fogueira, assim como outras obras de esquerda. A chama piromaníaca, mostra-se terrivelmente ambidestra. E mesmo os reticentes "Não sei se eu queimaria... mas se fosse obrigado a fazê-lo, decerto optaria por qualquer obra que eu percebesse menosprezar o valor da vida humana, disseminando preconceitos e afins. Não sei citar um em especial" ao cabo, cogitam a possibilidade.

Mas se a chama piromaníaca é insistente, por outro lado, a discussão nos grupos demonstrou que há resistência ao caminho mais fácil que é a intolerância e ruptura do debate. Entre os conscientes, a argumentação contra a insanidade das fogueiras literárias, em geral vinha embasado em argumentos.  "Queimar livro é tão fascista" diz um participante. Outra integrante relembra "Nunca.todos tem o direito de se expressarem. não gostou do que leu, doa para um Sebo de livros. NUNCA QUEIME LIVROS. Os únicos que queimaram livros foram os militares NAZISTAS que serviram a Hitler. os comunistas de stalingrado, os colonizadores espanhóis e romanos também fizeram isso..." Alguém se manisfesta ponderadamente "Nenhum livro precisa ser queimado pode não ser lido mas merece respeito." Outro participante aponta para o autorismo da questão  "Não. O meu subjetivo não deve ser arbitrário para julgar o que deve ser c escrito ou lido. Isso é idiotice." Um lembrete interessante diz respeito que " Se uma pessoa não consegue conviver com a propagação de uma ideia da qual não concorda, ela não pode se considerar apta a viver em sociedade". Além disso, alguns lembraram o poeta Heinrich Heine "Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas", fato incontestável conforme registra nossa história. Em suma, quem se opôs à chama piromaníaca procurou apontar o totalitarismo presente na ideia "Jamais, os Estados totalitaristas fizeram isso(comunismo, nazismo), os colonizadores (agressivos) acabaram com muitas culturas destruindo os seus vestígios. Queimar qualquer livro, é matar a cultura e literatura. Os livros são atemporais, registros históricos de pensamento e posicionamento do autor, que demonstra em relatos, toda sua criatividade. O que aconteceria se por ventura, os livros sagrados das religiões fossem queimados. Me causa espécie qualquer pensamento do tipo, principalmente num fórum de incentivo à leitura e cultura!!!" Além disso, sempre com demonstrações de espanto de tal possibilidade ser analisada justamente em fóruns de autores.

Certamente isto nos mostra a gravidade do problema. Um problema que nestes tempos polarizados encontra o gasolina perfeita para a combustão devastadora. Entretanto, vejamos, parto de um princípio que todo e qualquer comportamento ético deve partir de uma ação prática contrária ao que me oponho. Não posso condenar as fogueiras literárias, todas elas, se em meu pensamento conjeturar ou relativizar esta ou aquela narrativa possível a ser incendiada. Todo livro queimado é uma declaração de fracasso civilizatório. Infelizmente as provocações apresentadas neste texto encontraram nos dois espectros políticos e culturais intenções piromaníacas. Como um pensador progressista e libertário espanta-me ainda mais que supostos progressistas cogitem das mesmas artimanhas dos poderes autoritários, absolutistas e totalitários. Parto de uma única possibilidade de enfrentamento aos livros que tragam ideais que discorde [aliás, diga-se que sempre vale ressaltar o questionamento, mas enfim, quem teria direito de escolher o que serve ou não?], a única fogueira possível, a fogueira da argumentação. Vejamos, por exemplo, uma das narrativas muito citadas, Mein Kampf. Proibi-lo, funciona? Funcionou? Por acaso não andam tantos exemplares pelas sombras, espalhando ideias nefastos? Não seria mais sensato então as publicações deste, comentadas e criticadas por pesquisadores? dedos apontados para as fragilidades dos argumentos? Para a insensatez das ideias de uma mente maligna? Queimá-lo, literal ou metaforicamente mais o ajuda ou o atrapalha? Mais do que uma insensatez, pensar que queimar esta ou aquela ideia é possível, não passa de tolice. Todo tirano tentou isso, todo autoritário ensaio isso. os resultados, vejamos, não são eficientes. Ademais, quando tomamos a argumentação e a contra-argumentação como único fósforo tomamos talvez o único e viável caminho para a construção de uma consciência civilizadora. Mesmo que seja um caminho de passos lentos a frente, e alguns apressados para trás. Consciência não se põe, seja pela força, pelas leis, ou pelo esconder das ideias absurdas. Os livros absurdos precisam existir, pois que se trabalhamos pelo contrário, mostra o quanto não aprendemos ainda. Os livros com ideias têm de ser massacrados pelo argumento, pela exposição das bobagens que pregam. E olha que nem mesmo isso é uma garantia que sejamos exitosos em mostrar as incongruências de obras nefastas, ou simplesmente ruins. Retomando a reflexão de Heine, sobre queimar livros e queimar pessoas, isso porque livros não são apenas objetos. Não trata-se de papel encadernando. Independente se ficção, ensaios, artigos, etc... livros são ideias, e ideias não nascem por conta própria. Atrás das ideias há pessoas, de todos os tipos e com todos os enganos, contradições ou intenções. Por isso há lógica em se dizer que onde se queimam livros, se queimam pessoas. Em última e radical instância o mesmo que conjetura queimar um livro, é bem provável que conjeture queimar uma pessoa.

E não trabalho aqui com a ingenuidade e a utopia de que por pelo menos um bom tempo, no andar da carruagem histórica não haverão tantos e tantos tiranos a riscar fósforos contra os livros, contra o conhecimento. A questão posta é de qual lado eu estarei? A tiranias são ambidestras como mostra a história, e especialmente no caso de quem escreve, de quem faz ou pretende fazer o uso da palavra, o posicionamento radical contra toda e qualquer fogueira literária, todas elas, deveria ser pilar pétreo. Relativizar a queima de ideias e estar disposto que suas próprias ideias e palavras sejam queimadas. Mas para além disso, e finalizando essa breve reflexão, um outro tipo de participante nos debates aqui mencionados foram os autores que citaram a própria obra enquanto "vítima" de uma possível censura ou queima de seus livros. Alguns, inclusive, mencionaram que isso lhes seria um tanto benéfico. Apontavam ainda que em tons de escracho, outro efeito de se queimar livros. O aumento do interesse pela obra [no meu caso particular prefiro seguir sem muitos leitores do que achar que esse expediente traga algo positivo]. Censuras recentes neste país cada dia mais autoritário reforçam essa ideia de que a censura vende. Paulo Freire parece há tempos não vendia tanto. Autores e autoras brasileiros que tiveram de algum modo cerceados suas atividades tiveram repercussões neste sentido. Mas de modo algum isso é coisa de se comemorar, apenas reforça a tolice que é essa chama piromaníaca. Por isso, principalmente aos ditos progressistas, democráticos e libertários, cada vez que se pensar ou concordar jogar um olavinho à fogueira, dez outros olavinhos surgirão, repetindo e ladrando as mesmas barbaridades. Cada vez que algum jovem pra frentex dizer que a Bíblia ou qualquer outro livro sagrado bem que poderia ser queimado, algumas legiões se levantarão ainda mais radicais [aliás, num dos grupos, a postagem pendeu para diferentes inquisições]. A respeito das ideias bossais, sempre nos restará uma única jornada, denudá-las em suas bossalidades, escancarar suas imbecilidades, suas maledicências. Walter Benjamin chegou a dizer que "convencer é infrutífero", mas ainda é a única arma ética que nos resta. Uma luta constante e diária de convencimento do quanto ideias totalitários, autoritários e intolerantes precisam ser superados. Bem verdade que tem sido uma luta de pequenos avanços e outros tantos retrocessos. Mas este não é um projeto para hoje, amanhã, ou séculos. Quem sabe alguns milênios à frente, tenhamos enfim, vencido esta batalha.