Das voltas que o mundo dá e/ou dos meus encontros com o demônio

 


A vida, essa passagem, essa travessia, enfim essas veredas pelas quais percorremos são curiosas em suas voltas e meia e meias voltas que dá. Foi dias desses que pensando na tese de doutorado que me aguarda, o tema escolhido, as leituras feitas e a se fazer que de repente veio aquela sensação de estranhas conexões tecidas por fios que aparentemente sequer pareciam trazer alguma interconexão.

Mas de repente que eis: meus encontros com o demônio datam de longa monta.

O primeiro e talvez mais distante leva-me à infância. Foi lá que tive pela primeira vez a sensação de topar com o tinhoso. Não recordo muito a idade, beirava os dez, com a margem de erro do Datafolha. Era justamente uma quinta-feira santa, data sugestiva. Estávamos - eu criança - e um bando de homens bêbados num ermo rincão aqui do Rio Grande do Sul. Pescaria, dessas que o peixe importa menos que a cachaça para os adultos. Era o único sóbrio, talvez o único a sentir a presença incômoda - ou ser sugestionado a isso.

O lugar era à margem de um rio de águas rápidas. No entorno apenas mata e à distância a ponte muito alta que ali existia. Beirava a meia-noite - o cenário era mesmo sugestionável a um garoto - e passei a ouvir ruídos de motores pouco antes da transformação da quinta em sexta-feira santa. Pesa-se aí que não era do agrado da mãe termos ido à pescaria - eu e o pai (no meu caso não tive muita escolha). Tentava dormir em meio a algazarra dos homens.

Creio que dormi um pouco. E nesse estado meio-termo é que por volta desa meia noite despertei. Os homens dormiam um pouco. Não recordo outros despertos. Foi então que olhei para o alto, para a luz em meio ao negrume de uma noite densa. Era um farol. O ronco do motor lembrava-me aquelas Harley que via nos filmes. Ao menos foi a associação que fiz. O farol, redondo comum uma pequena lua indicava que a moto estava na transversal sobre aponte. Alumiava nosso acampamento, percebi, assim como vi vagamente um vulto sobre a máquina e uma sensação ruim cobriu meu jovem corpo.

Fosse o que fosse, certo que o que estava lá em riba observava a nós. Senti esse incômodo. Desde então guardo a sensação de que aquela noite encontrei o demônio. Mais estranho ainda é que no regresso à casa, pela manhã, não encontramos ninguém. A família pernoitara em vizinhos depois de um raio - à noite quase por fogo na casa (de madeira).

Aliás, embora a relação já sem relação com o pai, ele estava nesse encontro e em outro momento cuja lembrança do demônio ficou gravada da infância até hoje. Curiosamente, embora sua figura tosca e bruta, ele era um leitor. Um leitor de quadrinhos. Da caixa dele ficaram imagens longínquas da minha experiência leitora. Uma era de um quadrinho que falava do fim do sol. Aquilo assustou muito o garoto que era. Lembro-me ainda de um dos quadros com a população fugindo em pânico e fragmentos estelares destruindo o planeta. Era-me assustador porque era real. Dessa mesma caixa havia uma estória da qual nada mais gravei a não ser o último quadro, nele o tirano da trama, um ditador em roupas militares - parecia vender a figura do Stálin pensando bem - sentava-se vitorioso numa rica poltrona. A sombra que projetava seu corpo tinha a silueta do Diabo.

Na verdade, numa família que foi criada sob o catolicismo, o Diabo era figura tão presente quanto Jesus. Sua realidade era uma coisa dada como concreta por minha mãe que veja só foi também minha catequista. falei atrás da sexta-feira santa; a nós esse era um dia de silêncio e extremos cuidados. Naquela época minha mãe ainda acreditava em Deus, por consequência no Diabo. A sexta-feira santa era o dia do Diabo, o dia que ele estava à solta. Era um dia muito silencioso lá em casa. Ai de quem falasse palavrão. Esbravejar o dito então, coisa de castigo para as aleluias que se tirava no sábado. Era também nosso dia de descanso, aliás, nada de facão ou machado para cortar lenha, nada de muito perigoso, afinal, o Diabo estava a solta e nós levávamos isso muito a sério.

Diga-se que minha mãe nesse quesito não pesava apenas sua formação católica. Fora próxima de meu avô paterno que "mexia com umas coisas" e que teria ensinado a minha mãe alguns truques para espantar o coisa ruim. O ensinamento foi útil, verdade seja dita; uma vez lembro de ela ter feito alguma coisa ou alum truque ou reza das que não se encontra no catolicismo. Poucos minutos depois alguma coisa muito, mas muito pesada passou correndo como se manada fosse, perto de casa.

São esses talvez os encontros mais longínquos com o demônio de que me lembre. Houve algum interlúdio nesse aspecto, e já na transição da adolescência para maioridade encontrei um camarada que por algum tempo partilhou de minha jornada. Esse camarada certo dia - conhecido de uma conhecida - me deu uma carona. Lembro do olho dele, um olhar maligno. Foram duas horas que conversava com certa tensão com o camarada. Conheci o apartamento dele e ao jovem que era, as figuras que tinha como decoração me impressionaram ainda mais, no mal sentido. Ainda hoje recordo esse camarada e quem sabe não fosse ele um capetinha?

Pensando bem, nessa época trabalhava longe de casa. O dono tinha uma imensa rede de postos de gasolina e geralmente contratava jovens impressionáveis do interior. Guardava nas gavetas de cada filial patuás e mandingas de boa sorte que entre nós, a plebe proletária, era prova inconteste de seu pacto com o Diabo. Bem capaz na época que imaginaria que nossas suspeições tão simplesmente evocavam um mito que encontrar-me-ia nos estudos, muitos anos depois. Para nós o chefe tinha um pacto e a certeza aumentava cada morte de funcionário - naquela época assaltava-se muito a postos de gasolina. Nesse sentido, aliás, talvez uma das possibilidades da persistência do mito de Fausto na cultura dê-se porque ela viva fortemente nas camadas populares. Ainda hoje você encontrará alguém dizendo que o sucesso de outrem é por causa do pacto com o capeta.

Por essas e outras voltas, veio o desejo de escrever esse texto que provavelmente chegará a leitor algum ou a poucos. Mas é uma forma de organizar as ideias. O insight nasce quando percebo que o projeto de pesquisa de meu doutorado, que antes nem imaginava como nascera, me acompanha há algum tempo. A pesquisa, como se já dá para perceber, está envolta pela presença do mito de Fausto. Quando apresentei o projeto a partir das leituras de Lourenço Mutarelli comparando com Guimarães Rosa pensava-o nascido das minhas leituras, do meu interesse no autor cuja presença do pacto é muito presente. Não sei se penso somente nisto, agora. 

É curioso que só agora percebi que isto me acompanha muito além. Uma percepção tardia quando percebo que meu primeiro conto publicado trata-se de uma narrativa fáustica. "O mercador de almas", publicado na antologia Noctâmbulos, da editora Andross. Até então não tinha me dado conta disso. O conto fora publicado no resiliente (afinal, ele ainda está no ar) site Recanto das Letras e por alguma Razão o Edson Rossato me enviou um convite para publicar o conto. Minha primeira publicação, veja só, um Fausto curtinho, um conto de página e meia.

Mais curioso ainda o comentário de um leitor que à época me desconcertou um pouco, ainda que escrevesse contos de terror. "Sigas o Cérbero e encontrarás teu caminho". Lembrei desse comentário agora que estou às portas da entrada para o inferno. Uma jornada pelo mito de Fausto tão prolífico entre nós. 

Realmente as voltas que o mundo dá são deveras curiosas.