#CONTO: Os Jardins de Borges e a Caixa de Sapato



Compartilho conto escrito para uma disciplina na universidade e que estava até então "perdido" numa pasta qualquer, num windows da vida:

***


Márcia entrou no quarto ainda sentindo o gosto salgado das lágrimas que escorreram até os lábios. Ela olhou para o ambiente e sentiu uma solidão tão opressiva a ponto de lhe causar dores físicas. Era um quarto simples, sem grandes luxos. Um quarto que agora para ela se tornaria imenso. Erraticamente ela foi até o roupeiro cujas extremidades estavam lascadas indicando sua idade. Abriu uma das portas e foi direto à velha caixa de sapato. Era como qualquer outra caixa de sapato, feita de papelão reciclado; na tampa a logomarca da fabricante estava desgastada. Tentando encontrar humor na tragédia, Márcia pensou que a caixa persistira enquanto o sapato há muito se fora para o lixo. Ela não tinha certeza de que encontraria algo dentro da caixa, mas se houvesse alguma resposta para aquela loucura, Márcia sabia que estaria ali. Ela abriu-a reticente. Ali estavam todos os documentos que ele sempre achou importante guardar. Comprovantes de pagamento, o velho documento do fusca que fora vendido, o histórico escolar, os antigos cartões de amor trocados em tempos já tão remotos. E, no meio de todas estas lembranças, Márcia encontrou a carta. Em três folhas de papel de caderno e com a reconhecível e irregular caligrafia de Carlos Eduardo. Márcia suspirou profundamente. Fora um dia duro, ainda assim se ler a carta lhe ajudasse a entender, ela o faria. Pegou a carta e...

Querida Márcia,


Antes de tudo, saiba que você sempre foi meu grande amor. Sempre encontrei luz em teus olhos, e compreensão nos teus afagos. Por esse amor tão grande, é que fiz o que já devo ter feito. Principalmente se nesse instante tu estiveres lendo esta carta.

Também não quero que te culpes, ou que então tentes a procurar culpados, Márcia. Sei que no momento que estiver lendo esta carta, você mais uma vez irá discordar de mim. Se pudesse me dizer o quanto estou pensando da forma errada, você me diria. No entanto, não podemos mais divergir, querida. E de qualquer forma será o tempo que nos dará a resposta quanto à correção de minha atitude ou não. Quando não podemos mais nos salvar, Márcia, é prioritário que salvemos a quem amamos. E sempre amei você, e a nossa amada Ritinha.

Mas não posso dizer, Márcia, que esta ideia brotou de um dia para o outro. Nem mesmo posso dizer que foi fácil tomar a derradeira decisão. Tudo começa nos livros meu amor... Tudo começa nos livros...

Veja bem, Márcia, não que eu queira culpar os livros. Pelo contrário, eles sempre foram minha iluminação contrapondo nossa vida tão mundana. Eles abriram minha consciência, Márcia, e nada é mais atroz do que sermos conscientes, minha querida. É justamente este estado que nos faz começar a perguntar as coisas. Até mesmo você, sempre me dizia, “Carlos, você é cheio de por quês?”

No fundo, Márcia, eu admiro essa gente comum, vivendo suas vidas de forma tão mundana e previsível e que encontram felicidade no banal e no escasso. Se contentam com qualquer migalha, e nunca, nunca questionam. Quem as explora? Por que as exploram? Por que precisam se matar como burros de carga, apenas para sobreviver? Nada disso, Márcia, a maioria não liga, e fingem felicidade. Não posso acreditar que de fato sejam felizes. No entanto, querida, os livros me fizeram diferente. Você sempre soube.

E esse é o grande paradoxo que eu fui me meter, Márcia. Ter consciência das coisas é bom. Mas não muito quando se tem a mesma vida dos cegos felizes. Veja bem, meu amor, não posso fingir felicidade enquanto consciente de meus fracassos e desilusões. Não posso me regozijar por dar a ti e a nossa filha uma vida miserável. Como os outros, apenas sobrevivemos, um dia após o outro nesta rotina cansativa e nossos salários exíguos. Márcia, os livros me ensinaram um monte de palavras difíceis. Me tornaram um peixe fora d’água. Nunca pertencemos a este mundo, meu amor. No entanto, olha-nos ainda aqui, presos a uma insignificância atormentadora.

Foi então, Márcia, que dia desses fui apresentado ao Senhor Borges. Argentino, imagine só. Mas um argentino fantástico. Foi o jardim do senhor Borges com suas veredas que se bifurcam que me abriram ainda mais os olhos, Márcia.

Veja bem, querida, não é apenas ficção. Não são baboseiras da literatura, como você tantas vezes me disse. Márcia, o que esse escritor disse, muito tempo depois os cientistas começaram a discutir que tais ideias eram possíveis. Essa segunda parte vi no Google. O Google também nos mostra muitas coisas interessantes, Márcia.

Mas o que importa dizer, Márcia, e creio que você não conheça o Senhor Borges, é que ele fala do tempo. Das diversas possibilidades de sua existência. É mais ou menos, minha querida, como se existissem no universo, tempos paralelos; com mais de nós mesmos, só que claramente com as variações distintas e possíveis das nossas ações. Isso não é incrível, Márcia? Para o senhor Borges, num tempo diferente deste, eu sequer escrevi esta carta. Eu sequer terei feito...

Veja, Márcia, a idade me avança no tempo, e o que conquistei? Nada além do teu amor; e a nossa Ritinha. Eu sei, isto é muito, mas meu amor, eu sei o quanto é insuficiente para todos nós.

Acho que por tudo isso é que a teoria do senhor Borges me encantou de tal maneira, Márcia. É claro que por acreditando em tal pensamento haverá outros tempos paralelos a este que sequer eu e você nos tenhamos conhecidos. Imagina se eu não te atropelo com minha bicicleta, Márcia. Para o senhor Borges há um tempo que isso de fato não ocorreu. Juro, querida, que pensar nisso me irritou. Doeu pensar mesmo que noutro tempo, você teria amado outro que não a mim. Olhe como a teoria do senhor Borges não traz só coisas boas, Márcia. Mas, por outro lado, Márcia, se o senhor Borges estiver certo, haverá um tempo paralelo a este, em que, por exemplo, aquele velho original do meu romance foi aceito por aquela editora graúda para qual o enviei. E olha como as coisas se bifurcam, como nos jardins do Senhor Borges, minha querida. Para ele, esta minha nova versão, poderá também se dividir entre o escritor que fracassou em seu primeiro romance, e outro tempo em que o escritor se torna um bestseller. Esta possibilidade me alegra mais querida. Talvez neste distinto tempo tenhamos uma casa decente, pelo menos um carro para satisfazer nossas necessidades, e mais importante de tudo, talvez assim poderíamos dar à Ritinha tudo o que sempre sonhamos.

Viu como os livros são cruéis, Márcia? Eles nos mostram coisas. Coisas para pensar. E eu pensei, pensei por muito tempo, minha querida. E as ideias do Senhor Borges penetrando cada vez mais fundo em mim. Quem não sonharia com novas possibilidades...

Foi quando percebi a verdade contida em tudo, Márcia, é que a ideia de fazer isto surgiu. Não com convicção, seria mentira dizer isso. Mas ainda assim, a sugestão foi crescendo assim como uma plantinha regada com água e alimentada com bons minerais. Tudo porque a verdade me pareceu insuportável, Márcia.

Veja bem, Márcia, se o Senhor Borges estiver com a razão, e os físicos dizem que há possibilidade disso, eu estou neste tempo. E neste tempo, Márcia, basta olhar para trás e ver que não passo de uma sucessão de fracassos, minha querida. Nunca por falta de tentativa, você bem sabe. Mas, neste tempo coleciono tristemente, desilusões, Márcia. Quantas vezes conversamos sobre isto, de como as coisas se arranjam para que tudo dê errado para nós. A demissão ao invés da esperada promoção; os estudos que tiveram de ser interrompidos; as escolhas que me afastaram de muitas coisas. Na juventude, meu amor, eu tentei ser jogador de futebol, não deu certo. Conheci as letras, mas minhas palavras não cativaram ninguém, minha querida. Sempre tive um imã para aqueles que chegavam perto de mim, cresciam, e eu sempre ali, estagnado, diminuindo. Viu, Márcia, como as coisas ficam simples quando temos clareza para vê-las? Estou neste tempo e, querendo ou não, este me parece ser o tempo do eu fracassado. Triste, Márcia, porém real.

Mas não vá pensando, meu amor, que me entreguei de imediato àquela sugestão. Não mesmo. Enviei e-mail para uma meia dúzia de professores. Físicos renomados. O mais incrível é que a maioria deles me respondeu, Márcia. Nas mensagens expus-lhes meu interesse na teoria do Senhor Borges, perguntei-lhes sobre avanços da pesquisa, e com certo grau de atrevimento, também lhes indagueis sobre a probabilidade de viajarmos por estes distintos e paralelos tempos. Tenho certeza, Márcia, que minha versão escritor bestseller não mesquinho certamente ajudaria de alguma forma sua versão fracassada. A mente do homem viaja longe, Márcia, e eu precisava me agarrar em alguma coisa.

Mas as respostas que retornaram não foram animadoras, querida. Falavam, sim, da seriedade com que todos discutiam a possibilidade da existência de tempos paralelos. Mensagens animadas de alguns deles, inclusive. Mas o que todas as respostas tinham em comum é que a probabilidade de uma viagem por estes tempos distintos era praticamente nula. Não sei por que isto me atingiu como se fosse um balde com água fria. Mesmo se fosse possível, que condições eu teria para tal viagem? O que estava pensando quando enviei estes e-mails, Márcia?

Talvez sejam os sonhos que os livros nos ensinam a sonhar, Márcia.

Mas o fato é que, como se no meio de um ciclo sem fim, eu voltara para o ponto inicial. Para minha consciência da mediocridade a que joguei toda minha família. E pareceu doer mais do que em qualquer outro momento. Eu estava neste tempo do eu fracassado, Márcia. E sem esperanças de mudar, de encontrar uma alternativa.

Foi então que a sugestão se tornou forma, meu amor. E é assim que desejo que vejas minha derradeira atitude, e também esta carta. Márcia, tudo isso é a maior declaração de amor que poderia te fazer. É nisso que acredito, minha querida. Espero que me entendas. E, se possível, que me perdoes.

Tudo está relacionado ao Senhor Borges, Márcia. Ele mostrou-me o tempo do meu eu fracassado.Este mesmo tempo que vivemos, minha querida. E como descobri não há como pedir ajuda de outros eus, melhores sucedidos. E este, Márcia, é o tempo do meu eu fracassado. Uma verdade irrefutável. Uma verdade que não posso alterar. Ou pelo menos não sei como...

No entanto, Márcia, como as veredas dos jardins do Senhor Borges, que se bifurcam, este nosso tempo pode se bifurcar. Não sei como poderia fazer isto me incluindo junto, mas, Márcia, eu sei como criar uma bifurcação, não para mim, mas para você e Ritinha. Eu sei que vai doer. Eu sei que você vai dizer que fiz errado. Mas como algumas das mensagens dos cientistas, tais bifurcações do tempo seriam frutos de rompimentos drásticos no presente. Não sei como realizar algo tão drástico que me jogue noutro caminho, Márcia. Mas sei como fazê-lo para salvar você e Ritinha do fracasso que me acompanha...

Pense, Márcia, se o Senhor Borges estiver certo, noutros tempos paralelos a este, continuarei vivo. Do teu lado. Somos felizes e nos amamos. Isto me conforta. Pense também que neste nosso tempo, neste exato momento que lês esta despedida, já estarás caminhando por uma nova bifurcação. Tenho certeza que isto muda tudo, Márcia.

Guarde esta carta, meu amor. Releia-a daqui alguns anos. Talvez as lágrimas doloridas que caem agora enquanto lês, sejam substituídas por lágrimas de emoção. É por amor, Márcia, que bifurcarei nossos caminhos. Sua força e coragem levarão-nas até onde não consegui levá-las. Adeus, Meu Amor.

Carlos Eduardo.