Resenha: O Filho mais velho de Deus e/ou romance camaleão



     Disfarçado de bobagem paranoica recheada de tiradas escatológicas e chulas, pode ser que, como as seitas secretas das quais debocha, O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV esconda uma potente e ácida sátira aos tempos ainda não nomeados que sucederam a pós-modernidade. Publicado em 2018 pela Companhia das Letras, a obra chegou às livrarias com uma década de atraso (e depois de uma versão inteira ser jogada fora) após ser encomendada pelo projeto Amores Expressos* idealizado pela RT Features. A proposta original era a de que os escritores participantes do projeto, 17 ao todo, visitassem diferentes cidades do mundo para depois escreverem uma narrativa tendo o amor e a cidade visitada como premissas do romance. É possível que a escrita de Mutarelli seja uma das mais improváveis desse conjunto, afinal o romance, embora exista, é pouco ortodoxo, e a cidade, embora retratada, não passa de mero cenário rabiscado com os ranços do próprio autor para com a metrópole que ironicamente chama de Maçãzona. 
     A bem da verdade, a narrativa, algo entre a visão alucinógena e o azedo de uma sátira amarga e sarcástica, passeia por diferentes gêneros, dos thrillers à ficção científica, para narrar a jornada de um personagem de múltiplas e nenhuma identidade, um sujeito de vida medíocre e visão endurecida por seu ceticismo, que na busca de uma nova vida acaba envolvendo-se com um grupo secreto misturando teorias reptilianas e fixações sexuais do protagonista, que termina a narrativa como George, mas que já fora Charles Noel Brown, o Peanuts. Nova York é então a cidade deste recomeço e de seu envolvimento com a Cães Alados, instituição em que conhece Sarah, mulher que ele desconfia ser um lagarto do espaço. 
   Marcado pela ambiguidade, o romance habitado por personagens homônimos, em sua maioria serial killers, é também irônico para com as narrativas, especialmente as teorias conspiratórias, como se numa construção dadaísta – embrutecida com certa verve naturalista tão comum às narrativas nacionais – vai juntando pedaços caóticos de um mundo influenciado pela internet e pela televisão, para construir sua sátira a um comportamento tão contemporâneo. Isso ao mesmo tempo em que discute não só os dramas existenciais de seu estranho e paranoico protagonista, mas a própria dualidade entre a amargura da compreensão cética de que “às vezes a vida é tão desnecessária” e do indivíduo que capitula para as narrativas fantasiosas das quais debocha e ri em sua sátira, uma escolha que parece estabelecer uma pedagogia do absurdo. 
   Por isso o romance parece evocar a ambiguidade e os poderes ilusórios do camaleão, tão citado pelo narrador, pois que parece produzir uma superfície aparentemente rasa a espantar seus leitores numa proposta maluca de contar a história de um homem medíocre, uma pessoa isolada pela imensidão da metrópole, que acaba no meio de uma insana e um tanto alucinada aventura conspiratória entre endereços sujos, hotéis baratos e sessões de sexo alienígena, tudo isso permeado pelos recalques psicológicos de seu protagonista, especialmente os relacionados à bunda e ao ânus. Tinha tudo para ser tosco, candidato a categoria B, se a literatura como nos filmes tivesse tal conceito. Contudo, se abandonarmos o senso comum e partirmos para uma garimpagem às diferentes camadas de composição desta narrativa, a sátira ganha força, com ela a crítica contundente aos tempos tão estranhos quanto os que vivemos. Como o camaleão, o romance de Mutarelli pode disfarçar-se de muitas coisas.

*Todos os autores participantes do projeto Amores Expressos registraram suas viagens (experiências) por meio de blogs. É possível acompanhar a experiência não menos curiosa do autor aqui.

**********
Livro: O Filho mais velho de Deus e/ou Livro IV
Ano: 2018
Editora: Companhia das Letras
Autor: Lourenço Mutarelli
Páginas: 334
**********

*****
Publicarei aqui no blog uma série de textos que ampliarão as discussões nesta breve resenha. A leitura do livro deu-se em consonância com as atividades do projeto de pesquisa da Universidade Federal de Pelotas e sob coord. do Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique. Amores Expressos - Identidades Ocultas cujos resultados estão sendo compartilhados no Instagram do projeto. Além da participação no projeto de pesquisa, os textos nesta seção integram as discussões do Grupo de Pesquisa Ícaro.  

Postagem Anterior Próxima Postagem