O Filho mais velho de Deus e/ou seres que vêm do espaço



É quinta-feira, 23 de setembro de 2007, quando um homem desembarca no aeroporto de Nova York como Albert Arthur Jones. Logo saberemos que esse homem esteve lá uma única vez, junto do pai, em sua infância, e tivera uma experiência formativa no Metropolitan. Também deduziremos rápido que trata-se de alguém em meio a uma transformação, alguém com motivos para deixar o passado para trás, mas, além disso, alguém que está construindo uma “nova” identidade, pois este homem que desembarca como Albert, logo será George Henry Lamson, um homem que vislumbra a possibilidade de uma nova vida ao entrar num estranho programa de proteção gerenciado por uma organização misteriosa chamada Cães Alados. Nessa nova experiência como revela-nos o paratexto na contracapa “é possível que ele encontre um amor pleno absurdo, uma mulher sobre quem recaem as suspeitas de que seja um lagarto”. Somando então o chamativo [para muitos, também tosco] disco voador na capa, uma perna de réptil acolá e o fato de que também “é possível que ele olhe para o céu de um modo diferente”, bingo! Logo inferimos que estamos diante de uma trama alienígena. Não se resume apenas a isso, mas a jornada extraterrestre é um dos elementos do romance O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV, de Lourenço Mutarelli. Isso nos leva a construção de diálogos com outras referências culturais e textuais envolvendo conspirações e criaturas do espaço.

Se pensarmos em termos de literatura, lembrança inevitável Guerra dos Mundos, de 1898, de H. G. Wells. A obra do escritor britânico é pertencente a uma série de publicações que vieram a serem conhecidas como narrativas de invasão, obras que grosso modo contavam de alguma invasão militar à Inglaterra. O que diferencia, contudo, a obra de Wells das demais, é que sua invasão é provavelmente a primeira a narrar uma invasão da Terra por extraterrestres, marcianos cuja tentativa de compreensão dá-se sob a forte impressão das teorias de Charles Darwin sobre H. G. Wells, presente nesse e em outras ficções científicas produzidas pelo autor. Tentava o narrador do romance, entender os invasores de Marte sob a luz da teoria da evolução. Romance seminal de praticamente toda narrativa extraterrestre desde então, na literatura, no cinema e na televisão, Guerra dos Mundos quando narrada em 1938 em um programa de rádio por Orson Welles causou pânico em toda a América que cria estar ocorrendo uma invasão real. Além de outras adaptações, o livro foi levado aos cinemas num elogiado filme de 1953 e numa não tão elogiada adaptação em 2005. Mas se toda jornada alienígena das ficções tem suas origens nesta literatura, contemporaneamente é nos cinemas e na televisão que encontraremos as influências e referências mais relevantes, muitas das quais poderíamos discutir possíveis correlações com a narrativa de Lourenço Mutarelli.

Segundo (Lambie, 2019)*, interessado em filmar sua própria invasão alienígena, o diretor Rolan Emmerich disse ao produtor Dean Devlin “imagine uma enorme nave alienígena aparecendo sobre esses arranha-céus, sua sombra mergulhando a cidade na escuridão” para na sequência dizer “esqueça os pitorescos discos voadores de antigamente – esses invasores por aí em naves do tamanho do Central Park”. É a premissa de Independence Day (1996). A ideia da nave gigantesca de Emmerich repete-se em 2009 com a série V – Visitantes. Assim como no filme de 1996 gigantescas naves planam sobre arranha-céus de diferentes cidades, inclusive em ambos com tomadas de um Cristo Redentor carioca com uma nave sobre si. Mas diferentemente dos alienígenas silenciosos [e grotescos como os marcianos de Wells] de Independence Day, em V as naves revelam um gigantesco display em cuja tela surge a imagem de Anna, uma mulher de formas humanas e de uma beleza peculiar a instigar não apenas mistério, mas talvez desconfiança, interpretada pela brasileira Morena Baccarin. Porta-voz dos extraterrestres que ao iniciar este primeiro contato com a raça humana, diz das intensões pacíficas de seu povo. Remake de uma série de 1983, em V, logo após o primeiro contato, os alienígenas conseguem se inserir nas diferentes esferas do poder e atrair a desconfiança de parte da população que começa a desconfiar das verdadeiras intenções dos visitantes, até que uma conspiração reptiliana revela-se aos espectadores. Nesse sentido, poderíamos refletir e/ou discutir a possibilidade de V – Visitantes como uma das referências e/ou intertextos mais presente em O filho mais velho de Deus. Aliás, a observação de como a ficção tem tratado a possibilidade de vida fora do planeta, ou mesmo como pensamos ou reagimos a essa possibilidade, ainda que ficcional, pode ser um tanto reveladora.

Para tanto é interessante analisarmos, ainda que com brevidade, as narrativas extraterrestres, tendo elas muitos contrastes entre si. Tomemos alguns elementos do romance de Mutarelli até então já sabidos. Um homem que quer mudar sua vida, envolvido com discos voadores e pessoas que podem ser lagartos. Como acompanharemos no romance e a depreender pelo próprio título, juntaremos a isso a presença de certa teologia (o que se discutirá posteriormente noutros textos), afinal, O filho mais velho de Deus logicamente leva-nos a aspectos teológicos ou no mínimo de mensagens espirituais e transcendentais, essa é uma relação que não raro surge neste tipo de ficção. A experiência transcendental de encontros humanos com extraterrestres é vista em filmes como o clássico O dia que a terra parou (1951) adaptado do conto Farewell to the Master, de Harry Bates. Produzido numa época conturbada de força do macarthismo nos Estados Unidos “como Klaatu, Blaustein [personagem talvez inspirado em Einstein] queria defender a criação de laços mais fortes entre as nações – dificilmente uma opinião popular entre americanos na época”. Para (Lambie, 2019) o filme ainda borrifa metáforas de cristo. Nesta perspectiva de contatos que alertam sobre nós mesmos e que mistura de alguma forma discos voadores e religião há também Presságio (2009), reunindo um pouco de mensagem ecológica misturada a conspirações, predições e um toque de espiritualidade. É um filme estranho cujos sinistros extraterrestres, no fim, desejam salvaguardar a espécie humana destruída por si mesma. Ainda na lógica dos contatos, ainda que alguns nos causem temores, mesmo assim amigáveis, se poderia ainda dizer da pegada espiritual e transcendental de O Segredo do Abismo (1989) cujo contato tem certo poder místico e a comédia Cocoon (1985), filme em que a relação entre um amistoso povo do espaço altera a rotina de um asilo de idosos e com isso acaba também tratando da construção de novas perspectivas e objetivos de seus personagens, assim como talvez aconteça com George Henry Lamson. Todavia, nem sempre é desse modo que ocorrem os contatos imediatos.

A bem da verdade, muitas vezes a construção do elemento alienígena é construída a partir da representação de diferentes medos e traumas da sociedade humana, tal como, em contraparte, suas visões utópicas do cosmos e seus possíveis outros habitantes. Nesse sentido, assim como em V, perceberemos reiteradamente presença da força atemorizante ao outro, algo bastante comum na ficção alienígena. Aliás, não coincidentemente o cinema da década de 50 é visto como a era dos óvnis, período propício à paranoia e ao temor do estrangeiro. Daí que dentre dos muitos filmes desta época, como a já citada adaptação de Guerra dos Mundos em 1953, outra adaptação que se tornou clássica nos cinemas Vampiros de Almas (1956), adaptado do romance Os Invasores de Corpos, de Jack Finney (1955), onde o inimigo pode ser qualquer um, o vizinho. Nesta obra as intenções extraterrestres, como em V, não são nada amistosas, e os extraterrestres assim como na série infiltrando-se entre nós. Numa época de extremada paranoia, Os Invasores de Corpos não deixa de ser um retrato sócio-histórico. Aliás, aqui, não perdendo de vista o romance de Mutarelli que impulsiona-nos neste texto, é interessante observar como se parece construir uma ponte entre aquele momento e o respectivo presente. Ainda que o próprio Autor diga que a ideia principal do romance surja ao ver um documentário sensacionalista sobre sereias, inegável o eco e contato mais próximo a programas como Alienígenas do Passado explicitamente influenciado por Eram os Deuses Astronautas, de Erich Von Däniken (1968), lembrança presente em O Filho mais velho de Deus e que no cinema inspira também o filme Stargate (1994). Embora não correlacionando os fatos, não se pode negar os impactos do pós-guerra, da Guerra Fria e de todas as celeumas que surgiram ao longo do Século XX, e independentemente da seriedade com que se discutam os assuntos, questões como Roswell, Área 51, entre outras, ainda hoje influenciam a cultura, especialmente a cultura de massas, caso do cinema. Tais ecos, ou talvez mais precisamente, temores e desconfianças, persistem e produções como Arquivo X (1993) e mesmo a sátira Men in Black (1997) são fortemente marcadas por aquela época. Além disso, embora desnecessário o reforço, tais tempos evocavam a desconfiança a partir de premissas reais. Stephen King, por exemplo, escreve sua ficção científica A incendiária, 1984, tendo por base a atuação de uma agência americana secreta conhecida como a Oficina, cuja atuação e pesquisa continha um bocado de Arquivo X. Tudo isso para dizer que não se deve olhar para tais produções, por algum tempo desprezadas e legadas a categoria B, com ingenuidade ou preconceitos que possam nublar nossas análises com descrédito ou narizes torcidos. Assim como as narrativas e a literatura de horror, as narrativas com extraterrestres têm sido meios eficientes em trazer à tona medos e tabus humanos, independentemente do que possamos pensar a respeito destes medos. Aliás, muitas dessas obras unem elementos de ficção científica, suspense e horror. Taken (2002) série dirigida por Steven Spielberg (um dos diretores que mais trabalharam o tema na televisão e cinema) embora sem reptilianos, a narrativa traz extraterrestres conhecidos por como Grays infiltrados na sociedade humana realizando experiências genéticas conosco. A linguagem da série traz a tensão de grande parte deste tipo de narrativa, como no caso de Sinais (2002) com Mel Gibson cuja invasão alienígena acaba no fim sendo uma “reconquista da fé” por seu protagonista que abandonara a religião depois de uma tragédia. Em alguns casos a ficção científica adentra plenamente o horror, caso de outro clássico, Alien, o Oitavo Passageiro (1979) cujo parasita extraterreno acaba despertando macabros horrores e dialoga intensamente com o gênero consagrado por Poe e Lovecraft na literatura. Desse modo se deixa um pouco mais clara essa relação de imbricação mútua com a sociedade e de como ela acaba representando extraterrestres como os outros e de como muitas vezes se de a postura de relação ao estranho, ao alienígena. Distrito 9 (2009) é bom exemplo não apenas de rompimento de estigmas de gênero, afinal, a produção dirigida pelo Sul Africano Neill Blomkamp recebeu indicações ao Oscar, entre elas a de melhor filme, mas também geralmente é vista como metáfora eficiente na discussão das lógicas de funcionamento de tragédias humanas como a xenofobia e aparthaid.

Vejamos então que O filho mais velho de Deus, nesse recorte, toca numa certa tradição presente na cultura global [ e na Ficção Científica], aliás, a despeito do que possa parecer, não exclusivamente Norte Americana, pois como visto neste texto, a chegada alienígena é abordada por diferentes nacionalidades. Não menos curioso que as visões de invasões imperialistas venham especialmente de países como Estados Unidos e Inglaterra. Parece-me que não seria exagero pensarmos que o que trazem as naves extraterrestres dependerá de alguma forma das concepções de mundo e dos outros, evocadas por suas respectivas narrativas, pois se impregnadas de desconfianças e receios do outro, não necessariamente o alien, mas o imigrante, o judeu, o negro, o miserável, o estranho que chega é geralmente tomado por inimigo. Noutros casos o ceticismo e o tom de alerta, como em Presságio, o extraterrestre pode exercer de algum modo a função de um deus que escolhe uma minoria a salvar do apocalipse humano causado pela própria humanidade. Ou ainda a visão utópica de Cocoon e O Segredo do Abismo ou no recente A Chegada (2019). De certo modo as narrativas extraterrestres funcionam com uma espécie de espelho sobre as formas da sociedade em seus distintos extratos conceber ou imaginar o outro, os aliens, de modo que quanto mais fascista for essa visão (ou crítica de uma visão), maior, provavelmente, será o processo de desumanização do extraterrestre, como os insetos de Tropas Estelares, de Robert A. Heinlen (1959). Creio que estes sejam elementos interessantes como uma das possíveis entradas de leitura e interpretação ao romance insólito de Mutarelli [inclusive quanto a questões que podem levar à gênese da própria Ficção Científica embora possamos considerar a narrativa noutro gênero]. Podemos encontrar nas narrativas alienígenas interessantes elementos de crítica e retrato social, sendo elas díspares e às vezes antagônicas entre si, de modo que compreender sob qual lógica funciona o elemento extraterrestre neste curioso romance nacional pode constituir-se de curiosa e interessante viagem.

* LAMBIE, Ryan. O Guia Geek de Cinema, São Paulo: Seoman, 2019.


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Publicarei aqui no blog uma série de textos que ampliarão as discussões nesta breve resenha. A leitura do livro deu-se em consonância com as atividades do projeto de pesquisa da Universidade Federal de Pelotas e sob coord. do Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique. Amores Expressos - Identidades Ocultas cujos resultados estão sendo compartilhados no Instagram do projeto. Além da participação no projeto de pesquisa, os textos nesta seção integram as discussões do Grupo de Pesquisa Ícaro.