A Segunda Pátria, de Miguel Sanches Neto: A força destruidora das ilusões



Não importa no que se acredite, o destino final de toda ilusão é o duro confronto com a realidade. E quanto mais a ilusão estiver introjetada naquele que se ilude, mais doloroso e trágico pode tornar-se o derradeiro encontro. Você pode desacreditar a ciência e o aquecimento global, mas isso não o livrará dos efeitos da crise climática. Você pode acreditar que a Terra não seja redonda, mas certamente não encontrará o final do mundo. A miragem que é a ilusão pode perdurar muito ou pouco tempo, mas acredite, a realidade sempre alcança-a. Os efeitos desse encontro, que para alguns pode soar como epifania, para outros como trágicas descobertas, não isenta ninguém dos traumas que causam. A dor causada pelo encontro destas "águas" antagônicas é um dos temas que podemos encontrar em A Segunda Pátria, de Miguel Sanches Neto publicado em 2015 pela editora Intrínseca. O desolamento causado pela queda de todas ilusões será no livro combustível vital a seus protagonistas e demais personagens.

No romance encontramos uma versão alternativa da história brasileira. Na antessala da Segunda Guerra Mundial Getúlio Vargas alia-se a Hitler, e a partir deste ato torna a atmosfera já tensa, ainda mais opressora, angustiante. O espaço escolhido para dar vida à ficção é a região sul do país, onde há forte predominância da colonização europeia, que Sanches Neto recria sob uma nova perspectiva de poder, que no caso do romance coloca esta parte do país alinhada à filosofia do nazismo alemão. Isso já nos daria muito sumo para discussões e reflexões, entretanto, detenho-me aqui no papel das ilusões neste romance de tons distópicos. (Trato algumas destas questões neste outro texto) 

Apesar de reunir outros personagens importantes, a narrativa está centrada em dois protagonismos e suas respectivas experiências nesta sociedade totalitária que toma parte do Brasil. Bem verdade que talvez a serviço do romance, tais personagens encontram-se em determinados pontos da obra, embora cada um viva os fatos separadamente e com graus de relevância distintos. Na trama, ambos, além doutras ligações, estão unidos pelas diferentes ilusões que os animam por algum momento.

Hertha é uma descendente de alemães que por certo tempo ficará seduzida pelo nacional-socialismo de Hitler. Fará inclusive uma viagem à Alemanha para participar de atividades da juventude hitlerista. Em parte a ilusão de Hertha nasce como a de muitos, com o desejo de sentir-se parte de algo. Por isso ela inicialmente será uma entusiasta do nazismo, procurá vivê-lo com certa intensidade. Entusiasmo que será paulatinamente destruído com a atrocidade da realidade. Aos poucos, em parte auxiliada por um tio complacente e crítico ao nazismo, ela perceberá para onde tudo aquilo caminhará. Já de volta a Santa Catarina e vendo o avanço nazista no país e participando  de eventos cruciais da história, quanto mais a realidade do nazismo vai apagando e desfazendo as ilusões que o sustentam, Hertha tomará consciência da trágica realidade que a cerca. A essa altura sanidade e insanidade estão muito próximas uma da outra.

Ilusão também, essa talvez mais cruel, a de Adolpho Ventura. Ilusão que se mostra inicialmente pelo próprio nome, adotado após ser apadrinhado por uma família alemã que o patrocina nos estudos e possibilita que o jovem negro forme-se como engenheiro no Rio de Janeiro. No caso de Ventura, as ilusões o cercam de toda parte. Entre elas a ilusão dele próprio sentir-se mais alemão que os próprios alemães. Por muito tempo ele nega sua própria identidade e imagina-se alemão nato, culturalmente, inclusive. Porém a mais perigosa das ilusões, quiçá um erro, foi-lhe acreditar que estava sendo aceito pela sociedade. Que não era apenas um intruso entre "seletos". Adolpho descobre o perigo desta ilusão quando as forças de poder mudam com a aliança de Hitler e Vargas e ele está de volta a sua cidade trabalhando na prefeitura. A partir disso, campos de concentração se espalham pelo sul do país e negros são relegados novamente à escravidão, tendo ou não diploma de engenheiro. Nesse sentido a tragédia e queda de Ventura são didáticas quanto a forma de ação dos ideais totalitários. O engenheiro vai sendo destituído de sua vida um ato após o outro, até que a verdade inexorável bate-lhe à porta deixando claro a distinção entre os verbos aturar e aceitar. Ele vai sendo empurrado aos poucos, mas com velocidade constante, para fora da nova sociedade que se ergue no sul do país, até que a ilusão desfaz-se de vez ao ter de redescobrir sua família pobre e seu nome de batismo, Trajano. Mas isso, claro, ainda longe de ser toda a via sacra tenebrosa pela qual passará o protagonista e as diferentes ilusões que vão quedando, uma a uma.

As ilusões, porém, não cobrem tão somente os protagonistas do romance. É o manto dos fanáticos nazistas destas terras tupiniquins, presos também a uma série de ilusões que os leva a um mundo que já não existe mais. Um mundo que eles próprios tinham deixado para trás ao fugir para as colônias brasileiras. Nesse sentido, talvez o único ponto de lucidez na trama seja o tio de Hertha, pois os demais personagens estão presos cada qual a suas ilusões.De Getúlio Vargas a outro personagem histórico ressignificado no romance, e com relevância para narrativa: Negro Fortunato (personagem ainda envolto de mistérios de nossa história) é homem que carrega ilusões como as de Trajano, de pertencer a um lugar do qual logo é expulso quando da aliança entre Hitler e Vargas. A este personagem, contudo, Sanches Neto permite um importante acerto de contas dele com suas desilusões; o que não muda o fato das dores e dos traumas que surgem destas descobertas. Neste romance a realidade destrói toda e qualquer ilusão com a força de um pensamento distópico que nos joga à face o quão atrasados ainda estamos no processo civilizatório da sociedade humana.