Desesterro, uma obra ambiciosa e fora de seu tempo



É com diferentes olhares que devemos nos debruçar sobre Desesterro, de Sheyla Smanioto, obra vencedora do Prêmio Sesc de Literatura de 2014 e que sem dúvida é algo velho-novo na literatura brasileira. De uma narrativa crua e impactante o romance se constrói a partir de fragmentos que dão conta da história de uma família de mulheres, abandonadas e que como qualquer mulher brasileira, sofrem com a violência e a adversidade de um mundo que parece lhes ter como inimigas.

Dentre as virtudes deste romance que é certamente um divisor de águas na literatura nacional, há ao mesmo tempo o rompimento e o retorno à escolas clássicas de períodos da literatura brasileira. O rompimento se dá com o que é feito no momento, pois a autora foge de narradores em primeira pessoa com suas vocações literárias em busca de escrever algo que fique para o mundo. Passa longe também das obras cíclicas com seus narradores-autores-protagonistas que existem aos montes por aí. Negando o que se vê em nosso presente, é ao passado que a autora retorna.

Impossível negar a relação estreita da construção de Desesterro com os pilares do modernismo na literatura brasileira. Michel Laub e Noemi Jaffe no texto de orelhas falam das "torções gramaticais" presente na obra, e com isso já reforçam a presença da estética modernista. E de fato, este é um romance cuja prosa se aproxima da lírica, além de propiciar suas subversões sintáticas, algo muito apregoado durante o modernismo. Além disso, o neologismo é um dos outros recursos abundantes da obra, e que não deixam de causar impacto. De certa forma, podemos aproximar o livro de Memórias Sentimentais de João Miramar sem grandes objeções. No entanto, se a estética modernista é presente, não podemos negar também a aproximação do livro com aquilo que se chamou de "o romance de trinta" carregando certa aridez e desertificação como visto em O Quinze. Além disso, é nas favelas e nos sertões da pobreza em que tudo ocorre, mais uma vez nos aproximando de tais períodos literários. 

Mas não é só ao modernismo e ao romance de 30 que poderíamos alinhar esta obra. Há em sua narrativa violenta, cheia de sangue, terra e vísceras elementos fortes do naturalismo brasileiro. A forma como o mundo oprime as mulheres de Desesterro é chocante. Numa obra em que a humanidade é vista de sua pior forma, com sua forma animalesca de viver. Do incesto ao canibalismo antropofágico, tudo está presente nesta obra ambiciosa e, por que não, arriscada de Sheyla Smanioto, que ao mesmo tempo se propõe a realizar uma correção histórica ao passo que decide observar país a partir do ponto de vista das mulheres.

Portanto, este é um livro que ao revisitar o passado, propõe algo novo para a literatura brasileira, e o faz não sem correr riscos. É uma obra a ser observada com lupa e atenção. Desesterro certamente será debatido com afinco por acadêmicos e leitores numa obra que ao mesmo tempo que é contemporânea parece ter sido escrita noutra época e contexto.