Parece meio óbvio dizer: não se nasce leitor, leitora, torna-se leitor, leitora. Aliás, perceber nossa leituribilidade, ou seja, descobrir nossa identidade como leitor ou leitora não é uma ação automática, transparente. No meu caso, por exemplo, foram anos, décadas desconhecendo ou simplesmente ignorando o fato de que era um leitor, que a leitura compunha minha identidade.
Nem mesmo o fato de em 2009, em um momento um tanto tumultuado da vida pessoal e profissional, na ânsia de iniciar algum projeto de escape, tenha voltado-me especificamente à literatura por meio do Blog Listas Literárias, nem mesmo ali, o despertar de minha identidade enquanto leitor parecia-me óbvio. O fato deste projeto ter impulsionado meu retorno aos estudos, à uma graduação em Letras, nem esse grande movimento de mudança me trazia a consciência de ser um leitor. Terminei a graduação lendo muitos livros, intensificando disciplinas optativas em literatura e ainda assim, tal identidade leitora não me era de todo compreendida.
A tomada de consciência levou anos, décadas. Na verdade, a tomada de consciência leitora demandou estudos e apenas em uma disciplina com a professora Rosane Cardoso, que nos apresentou os textos ricos de Annie Rouxel sobre o sujeito leitor e nisso a ideia de Pierre Dumayet quanto à autobiografia do leitor que, enfim, vi-me pensando na minha própria experiência de leitura e aos poucos a tomada de uma consciência que foram revelando uma inesperada relação íntima com a leitura. Aos poucos a noção de minha leituribilidade foi demonstrando o quão a leitura e os livros foram conduzindo minha vida por uma trilha que, de modo geral, se fechava a muitos outros semelhantes à minha realidade.
Enfim, a leitura, fui percebendo, sempre uma distinção em minhas práticas.
Não pretendo aqui lembrar dos livros lidos, não é a proposta. Este texto centra-se no processo de um leitor improvável. Improvável porque morador de uma pequena família de interior, da zona rural de Pantano Grande-RS, família de pouquíssimas condições financeiras e com tantos outros problemas agravantes à situação, uma família como a de muitos entre colegas de ensino fundamental e amigos, as quais os livros poderiam ser artefatos estranhos, mas que ainda assim viabilizou a constituição de um leitor.
Como o processo é o que importa aqui, pensar a biografia de um leitor levou-me a questionar-me, enfim, como se dá minha relação aos livros. Que mecanismos me aproximaram das páginas de modo tão decisivo. Talvez a lembrança mais remota seja a de encontrar em uma caixa escondida de meu pai exemplares de histórias de horror em quadrinhos. Duas delas em especial, ainda hoje imprimem duas cenas em minha memória; uma, o apocalipse causado pela explosão do sol, pessoas em fuga, desespero. Aquela história talvez tenha me dado a forma como compreendo ainda hoje as certezas inevitáveis, ainda que nos tragam medo. A outra, pensando inclusive por onde envereda-se minha tese de doutorado, do mesmo modo causou grande impacto; a cena final em que um déspota militar senta-se em seu trono. O que me causou arrepios foi a silhueta de sua sombra, um demônio, o diabo.
Estas duas leituras certamente estão em minha lembrança, assim como os quadrinhos que uma tia-avó emprestava-nos para ler. Em sua casa havia uma coleção dos faroestes de Tex, personagem que a seu modo também imprimiu neste leitor muitas coisas de seu imaginário pessoal. O que não faltavam eram histórias do Tex para ler na casa da vó. Tinha os seus genéricos, mas nunca fui fã de Zagor. Os quadrinhos, aliás, sempre estiveram entre minhas leituras, fossem emprestadas ou quando era possível comprar alguma, como as de Chico Bento, cuja estória sobre atalhos até hoje influenciam minhas rotas, ou algumas da Disney, no caso de Superpato, minha predileção.
Com minha mãe a relação com as leituras foi ainda mais peculiar. Logicamente o fato de vê-la lendo suas coleções de Sabrina, Barbara Cartland entre outras do gênero deveria instigar a curiosidade, afinal o que há na leitura? Mas ao voltar-me às minhas leituras, a memória retomou o fato de que compartilhamos muitas leituras. Minha mãe sempre gostou de ler e, embora não tivéssemos dinheiro para comprar livros, tínhamos as bibliotecas, fosse as da escola ou a Biblioteca Pública Municipal. Lembro-me de que no ensino fundamental muitos dos livros que eu retirava na biblioteca, ela também os lia. Embora fugidia memória, Éramos Seis foi uma leitura triste tal como Menino de Asas. O ensino fundamental me foi das aventuras da Coleção Vagalume e algumas descobertas com Jorge Amado, o qual preciso revisitar. Eu lia os livros - diferente de alguns alunos que reclamam desta “necessidade” hoje em dia - e como minha mãe os lia junto, conversávamos sobre certas obras.
A parceria leitora manteve-se quando no Ensino Médio ia para a cidade estudar. Antes mesmo de reconhecer-me enquanto um leitor, tinha a carteirinha da biblioteca pública do município. Em grande medida, minha mãe gostava de livros, sempre os lia. Às vezes retirava livros apenas para ela, outras vezes para mim. E líamos muitos, juntos. Quando passei a receber muitos livros em virtude do Listas Literárias, ela praticamente leu quase todos, ao menos até minha mudança de cidade. Aguardava pacientemente que eu lesse uma novidade e logo depois lá estava ela lendo o livro. Ter uma leitora em casa certamente implantou essa semente.
Além disso, sempre digo isso aos meus alunos, o lugar mais acolhedor de todo o meu Ensino Médio foi a Biblioteca Érico Veríssimo da Escola Estadual Pedro Nunes de Oliveira. Acho que talvez tenha passado nela mais tempo que nas minhas salas de aula. Nem sempre era para ler, mas a biblioteca sempre foi um lugar para me encontrar. Tudo isso me passava despercebido até as aulas com a professora Rosane e os textos de Rouxiel. Minha identidade leitora estava ali, mas é como se eu não a percebesse.
A essa altura vocês já devem ter percebido que há um aspecto essencial na constituição do leitor que vos escreve: a transmissão. Desde minha infância, independentemente de minha vida num espaço rural por vezes ermo, independentemente de nossa situação financeira não nos permitir a adentrar a uma classe média letrada, ainda assim, sempre estive cercado por leitoras e leitores. Isso, parece-me, desempenhou grande influência.
Pensando nessa experiência pessoal é que adentro a uma questão que recentemente alarmou parte de nossa sociedade. Tal parte, que se mostra preocupada com o devir nacional, espantou-se ao final do ano passado com a queda dos leitores no Brasil, segundo a tradicional pesquisa Retratos da Leitura No Brasil. Pode-se dizer que menos da metade do país é de leitores. Que país construiremos assim? Nas discussões que sobrevieram aos dados, o reforço da necessidade de programas de incentivo à leitura, de práticas que incentivem jovens e crianças ao hábito de ler. É preciso de fato fazer isso, mas não pode-se deixar de considerar um dos aspectos fundamentais que nos despertam para a leitura: a transmissão.
Ao narrar a percepção da minha leituribilidade, conecto-a à própria pesquisa que demonstra a relevância de familiares no incentivo à leitura. Mães, pais e professores influenciam mais que qualquer propaganda. Influenciam não pelo fato de dizerem que é importante ler, mas pelo fato de praticarem a leitura. A experiência é transmitida, como nos diz Walter Benjamin falando do narrador. Nesse sentido, podemos dizer que o mesmo se dá com a leitura, mais especificamente, sobre o hábito da leitura. O hábito da leitura se dá por transmissão. Uma transmissão que não nasce asséptica, apenas com instruções e ordens, mesmo que advindas com justificativas mais que justas. Um transmissão eficiente só se alcança enquanto modelo. Se temos entre nossos modelos de inspiração, leitores, tão mais eficiente será a multiplicação de leitores e leitoras.
Tal convicção, enquanto hoje professor, parece-me ainda mais evidente. De modo geral, o elo comum entre meus jovens alunos leitores, há em comum o incentivo ou os modelos inspiradores. Já entre os estudantes mais refratários à leitura literária, percebe-se, a distância estabelecida pela falta de bons exemplos. São estes estudantes refratários que mesmo com a oportunidade de leitura por meio da escola, ainda assim evitam-na. Não entrarei aqui no fato de que há certas forças sociais que convencem aos oprimidos que a leitura não lhes pertence, afinal, submundos interesses regozijam-se com um país de não leitores. Mas isto é causa de outro assunto. O exemplo aqui serve-me para talvez dizer que não excluindo-se as necessárias medidas a convencer nossos leitores a encontrarem os livros, o mais efetivo talvez fosse convencermos aos adultos até então afastados da leitura, que com ela se encontrassem. Talvez essa seja uma tática necessária para revertermos o quadro alarmante. A transmissão do hábito da leitura, cremos, é contagiante. Um contágio positivo, nesse caso. Tão mais jovens leitores teríamos se eles tivessem em seus modelos de inspiração, leitores e leitoras. Para mais jovens leitores, sem dúvida alguma, mais adultos leitores e leitoras que os inspirem é fundamental.