Estariam mesmo os brasileiros espantados com a corrupção? Tenho lá minhas dúvidas, vide a seletividade de uns e outros, que ocupem quais campos ideológicos de preferência, direita ou esquerda, em comum o que vê-se de todas as partes é a relativização da corrupção, especialmente "quando ela é desmascarada entre os meus". Dito isto, contudo, não podemos negar que dia sim dia não algo relacionado à corrupção ocupa jornais, blogs, e como sempre conversas de esquinas e botequins. Para muitos, levianamente tende-se a pensar ou dizer que isso é algo novo, e não se precisaria ouvir sequer o velho Emilio Odebrecht para saber que essa é uma prática tão arraigada ao brasileiro como o gosto pelo futebol e o samba. E se não bastarem os jornais, aí está a literatura como prova de que pelo menos aos autores - e creio que a boa parte dos populares - nossa nação corrupta não é novidade alguma como parecem tentar demonstrar alguns repórteres, estes ou ingênuos ou mal-intencionados ou simplesmente incompetentes mesmo, pois se é algo que está entre nós há muito tempo, é a corrupção.
Há quem se atreva a dizer que esta é uma atividade que nos acompanha desde o parto, desde o achamento quando os portugueses aqui chegaram. E os argumentos para tal pensamento são mais sólidos do que delação premiada, afinal, nosso ilustre escrivão deixou exposto - e talvez uma maldição ou herança - em sua carta a El Rei um comportamento que tornaria-se característico aos habitantes desta terra exemplificado num meme do Facebook "esperar o que de um país que se precisa prender canetas com correntes na casa lotérica". Pois retomando ao Senhor Pero Vaz de Caminha, sim aquele que você deveria conhecer pela carta [ algum professor deveria ter-lhe apresentado mas que provavelmente a maioria lembrar-se-á apenas agora] em que narra a chegada da caravana de Pedro Álvares Cabral a estas paragens, Esta carta que hoje além de nosso principal documento histórico também faz parte de nosso cânone nos estudos literários é um belo exemplar de nossa brasilidade, ou seria "portuguesidade"? Nela sob uma falsa modéstia perceptível Caminha, no linguajar popular, enseba El Rei contando-lhe das maravilhas da nova terra. Descreve ele quase um éden com seus selvagens nus e com as vergonhas descobertas, mas acima de tudo atiçando o monarca com a possibilidade de prata e ouro. Pois esta carta, para além da relevância histórica ela definitivamente se tornará antológica por seu desfecho:
"E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro—o que d'Ela receberei em muita mercê"
Vejamos portanto que temos aí um exemplo indelével de quando inicia-se certa predileção pelos favores públicos, pelo tráfico de influência e por aquilo que veio sendo construindo conjuntamente com a nação, nosso reconhecido mundialmente "jeitinho brasileiro". Então, uma lida na carta de Caminha já ajuda a recentistas que imaginam que a corrupção e a prevaricação não datam mais do que uma ou duas décadas a terem de rever seus conceitos. Mas para não ficarmos num único exemplo, sabedores que somos da influência do social sobre a obra de arte, dívida de saber que temos para com Antonio Candido, podemos recorrer a inúmeras outras representações que já trataram da corrupção nacional. Vejamos como João Romão foi construindo seu cortiço através do empreendedorismo malandro, catando tijolo aqui, tijolo ali. Poderíamos falar ainda do apático ou sobrevivente Naziazeno? que em Os Ratos perambula pela paisagem urbana de Porto Alegre em busca de meios pouco ortodoxos de arrumar dinheiro para pagar sua conta junto ao leiteiro. Até aqui, notemos, nos resguardamos às esferas da sociedade, sem ainda observarmos os meandros da política, feito este que Érico Veríssimo escancara com seu Incidente em Antares como neste trecho, mais lúcido, eficiente e claro que qualquer crônica política:
"Passou um mês na capital federal, conheceu-lhe a vida noturna, fez relações, insinuou-se nos bastidores da política e ficou estonteado quando teve uma visão do mundo dos negócios e especialmente o submundo das negociatas. Guardou a impressão de que o Rio era como uma daquelas localidades do Far West americano - que ele conhecia de fitas de cinema - nos tempos da corrida do ouro. Na capital do Brasil havia ouro à flor do solo. (...) alguns já haviam encontrado veios riquíssimos. Era uma luta de apetites, choques de interesse, um torneio de prestígio, um jogo de "pistolões". Muitos dos capitães e soldados da revolução que levara Vargas ao poder cobravam agora seu soldo de guerra. Um amigo de Tibério, gauchão cínico, que ganhara um lucrativo cartório, lhe disse um dia, comentando aquele "garimpo" alucinado: "para conseguir o que quer, Tibé, essa gente é capaz de tudo, até mesmo de usar meios decentes e legais".
Incidente em Antares, aliás, nos fornecerá uma cena antológica quando do alto de sua putrefata morte-vida, o já defunto Cícero Branco ao melhor estilo operação Lava-Jato utilizará o coreto da praça para delatar toda a sociedade antarense e suas corrupções. Com seu dedo furibundo apontará a um por um, e aqui diga-se, tarefa certamente fácil para um advogado que consciente de sua condição de morto não sofreria nenhum dissabor por causa de sua delação. Se até aqui já temos uma boa demonstração de obras literárias a refletir as chagas da corrupção, creio que nenhuma outra o fará de forma tão intensa quanto a distópica narrativa de Ignácio de Loyola Brandão, Não Verás País Nenhum.
Publicado em 1981, ainda em meio a um regime de exceção desde o golpe de 1964, o romance nos apresenta um país devastado. A maior parte dele foi entregue às multinacionais, enquanto outras como a Amazônia foram desertificadas. Corpos putrefatos empilham-se pelas ruas fétidas enquanto os recursos naturais desapareceram. É o desenho de um futuro sombrio, em que ao olhar para o presente e mirando o futuro Brandão escreve a mais sufocante das distopias. Uma distopia à brasileira justamente porque em seu cerne a corrupção é elemento estruturante da narrativa. No romance, o Estado agora é o "Esquema", afinal que palavra pode ser mais brasileira que esta: esquema. Loyola, se tentou avisar algo ninguém escutou. Sua narrativa apresenta o pior cenário de uma nação que entrega-se à corrupção sistêmica onde não há ninguém totalmente inocente. Vejamos que o próprio narrador-protagonista, Souza precisa participar do "Esquema" mesmo estando em sua hierarquia mais baixa. "De que me adianta não participar dos Esquema?" questiona-se Souza reproduzindo um pensamento bastante comum e que já impossibilita saber onde começa esse círculo vicioso, se nos governos que ao serem corruptos permitem/obrigam que a população faça o mesmo ou se na população que ao tolerar e praticar a corrupção sustenta governos corruptos. Assim, nesta terra em que o governo, no caso o "Esquema" é praticamente uma instituição etérea, a inocência perdeu-se e todos em maior ou menor grau agem de modo a angariar vantagens, obter subterfúgios, dar um jeitinho, seja para obter mais fichas de locomoção ou então garantir um pouco mais da escassa água como quando o sobrinho provoca Souza, "na hora de arrumar umas fichas de água, o Esquema é bom, né tio?". Nesse ambiente, portanto, a corrupção é generalizada, mas o topo do "Esquema" segue protegido e inalcançável e mesmo a existência de um círculo é tida como mito. Narrado em um futuro próximo [quem sabe nosso presente] o livro relata dos Abertos Oitenta, quando da "Grande Locupletação", demonstra como depois de uma primeira consciência de indignação "O Esquema" reagrupou-se de forma a prosseguir firme e forte. Mais assustador na obra é como o livro retrata a vitalidade do processo de corrupção e do "Esquema". A certa altura os jornais e a televisão tentam uma reação, cai um ministro e sem qualquer analogia recente, "O Esquema" então convence a todos de que o desenvolvimento do país não poderia parar, então por que noticiar estes fatos? Em suma, Brandão já adiantava este choque provocado quando da consciência do tamanho da corrupção nacional, sendo então que o problema passou a ser não a corrupção, mas sim o fato de ela tornar-se pública.
Enfim, não pretendo aqui produzir um texto longo - não mais do que já esta - mas acredito ter pincelado alguns elementos interessantes capazes de demonstrar que a corrupção, mais do que não ser uma novidade, é algo com a qual já temos um rico e farto material para reflexão a partir da literatura. Talvez, aliás, se nossos repórteres e nossos ingênuos ou fingidos cidadãos lessem mais livros, ouvissem mais músicas, e claro as conseguissem interpretar de forma adequada, certamente hoje o espanto, se é que há, não seria tanto, e talvez pudéssemos avançar para além desta catarse que tem aprisionado nossas gentes num verdadeiro mar de lama. Estamos exatamente naquele ponto imaginado por Brandão em que, ou "deixamos" o "Esquema" governar pelo progresso independente de sua corrupção [sic], ou de fato passemos a mudar nosso comportamento como sociedade a partir de uma compreensão bem mais ampla desta nação-esquema.
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