A impessoalidade exige abstração dos personagens


Eventos históricos e também recentes deste país revelam que a impessoalidade talvez não passe de mera utopia constitucional. Uma miragem como descobrimos há algum tempo, acerca das utopias. Entretanto, a impessoalidade deveria ser compreendida por todos nós, afinal, ela está como exigência a todo e qualquer servidor público. É questão clichê de concursos, quiçá só lembrada neste momento. É exigência da Constituição espraiada por milhares de Leis Orgânicas dos municípios. Na prática existe para que, em teoria, todo cidadão, independentemente de classe social, formação, etnia, credo, sexo, etc. seja tratado de forma impessoal pelos agentes públicos. Ou seja, a impessoalidade deveria garantir tratamento igual para todos, sem observar seus laços ou opiniões. Mas, para que a impessoalidade seja de fato colocada em prática, e mais do que isso, para que sejamos capazes compreendê-la e defendê-la como direito pétreo da cidadania, a impessoalidade exige a abstração dos personagens. Portanto, para compreender a profundidade e complexidade ética envolvendo os recentes vazamentos envolvendo da Operação Lava-Jato é imperioso que se abstraiam os personagens. A abstração é princípio do caráter impessoal, e a impessoalidade é exigência ao agente público. Por isso o caminho do debate não deve-se dar sobre esta ou aquela figura, sobre que está ou não certo. Refletir é verbo bem diferente de torcer. Em questões de tal seriedade, não deve haver torcida, mas sim reflexão. Para tanto, outro exercício nos seria de grande valia, a alteridade. Abstraíamos os personagens e nos coloquemos em situação. É a situação que deveria importar. Concebamos uma situação em que estejamos disputando alguma questão, seja na justiça ou qualquer órgão público. Nesta situação seremos uma parte, e consequentemente a outra parte será o outro lado da questão. Nessa e noutras situações semelhantes é que a impessoalidade surge como questão pétrea. Existe para que nessa hipotética situação enquanto parte, sejamos tratados da mesma forma que a outra parte. Nisso supõe-se – e exige-se – a impessoalidade, pois creio que, enquanto parte de alguma discussão, não gostaríamos de que fosse quem fosse o árbitro da questão, este agisse de forma pessoal, privilegiando, orientando, auxiliando a parte oponente. Possibilitando acessos a nós proibidos. Afinal, acho difícil que estando nós em alguma situação, fossemos defender o direito do agente público, seja qual for, de tratar de forma diferenciada aos amigos ou correligionários, de dar vantagens à outra parte. É a isso que se refere a impessoalidade. Logicamente não podemos negar uma tradição histórica de tratamentos diferenciados neste país, algo que está arraigado nos mais distantes rincões, nos mais diferentes órgãos públicos. A nós compete uma escolha, tratar tudo de modo pessoal, reconhecendo os personagens e naturalizando que uma das partes tenha tratamento diferenciado, sob o risco de uma hora não sermos a parte privilegiada, ou abstrair de vez os personagens e de fato defendermos a impessoalidade como garantia de tratamento igual.