Corra! O jantar está fugindo!


O fedelho não tinha mais do que três, três anos e meio. Sabe-se lá como tinha crescido ali, rechonchudo, rosado. Mais parecia coisa de gente da cidade, dos Da Cidadania. Nunca alguém da comunidade. Das Zonas Livres. Foi a Catinga que viu a coisinha ronronado como gato-mirrado. Era um chorinho, um grunhido. No começo ela até pensou mesmo ser um gato, servia já, há muito que não comia gato. Na verdade há muito que não comia carne. A última vez foi quando ela, Caboclo, Pé de Peido e Furunga andaram pela riba do morro, lá onde os barracos encontram as pedras. Era um ninho de ratos raquíticos, ainda assim, aquilo, lembrava-se, tinha sido um grande banquete.

“Mas nada como o qui vai tê ness’noite”.

Era Pé de Peido que afiava as facas enferrujadas. O encontro de ferro velho com ferro velho produzia onomatopeias esgarçadas e irritantes. Furunga tentava limpar a bacia com areia enquanto Caboclo tentava atiçar fogo numa lenha, coisa rara encontrada depois da pedreira. Catinga entretinha o fedelho para que não escapasse. Tinha já ajeitado uma peça para que Pé de Peido fizesse o serviço sem que ela visse. Catinga era muito emotiva, gente fraca, e toda vez tinha pena do bicho matado para o almoço.

P’raquela vez, dia de se fartar, tinham ainda chamado Zé Ferrão, a Xica Teta e a Demônha, essa sempre festêra e dona dum radinho bem velho e daquele troço que guardava dez mil músicas das antigas. “Hoje tem samba no morro” gritou Zé Peido ao ver a chegada da mulata fornida à laje.

“Deixa a vida me levar, vida leva eu...” chiou a caixa preta.

A música pareceu atinar o fedelho p’ro que ocorria naquele terreiro. Na primeira ficou todo atiçado, na segunda irritou-se, e no meio da terceira música deu um desses berros que se vê pouco e começou a correr do barulho. Daquela gente.

“Ô, Catinga, dêxa a janta fugir não, sua besta” deu o alarme o Cabloco já pegando porrete e dando início à perseguição. Era toda a gente correndo atrás do fedelho.

Tinha até graça ver tudo aquilo. Gente desengonçada fazendo o que não se fazia. Demônha no começo da corrida tropeçou numa garrafa de fermentada e estatelou-se no chão. Do Caboclo se ouvia o tink tink dos ossos. Mais ágil era a própria Catinga, mas sua altura e sua fraqueza de corpo não davam muita vantagem. 

Se a música assustou o fedelho de começo, a continuação da fuga, certamente se deu pela cena toda montada. Aquela gente gritando e indo atrás dele. Podia ainda ser fedelho, mas burro era não. Tinha coisa ali, natural que se pusesse a correr. Tinha a vantagem de ser baixote e sabe-se lá como, fornidinho de saúde. Na primeira catada de mão, Zé Peido passou longe dos cabelos, tropeçando numa pedra deixada ali. Quando Furanga chegou perto de catar-lhe com os dedos, estes escorregaram na pele melada do moleque. Corria que nem bichinho desmorrido, peladinho como quando cuspido buceta afora.

O quebra aqui, quebra ali, a algazarra e tudo mais, tiveram o efeito de multiplicar quem caça. Quem via o alvoroço logo se punha nele e de uma esquina para a outra o jantar na laje da Catinga tinha ‘gora dado início a uma das competição das boas. Risco era que comessem sem mesmo assar, porque atrás do fedelho certo que já tinha uns oitenta. 

Os olhos do danadinho eram agora uma dessas bulita estralada. Agigantavam-se no meio das fuças como se fossem saltar do rosto. É como se o fedelho tivesse noção do quanto estava fodido enquanto sem qualquer esperança, apenas ação, corria descendo morro abaixo.

Salta entre um abraço aqui. Escorrega por ali, pula aquela tábua, olha essa mão aí perto, tudo isso se ele tivesse noção d’alguma coisa, certamente pensaria. Mas fedelho que era, quem sabe instinto, corria, pulava, corria... Sentia doerem-lhe os ouvidos por causa da cacofonia em seu encalço.

Quando de repente tudo então cessou, o fedelho soube que alguma coisa no mundo dera errado. Foi mágica, segundos antes barulho, gritos, o fedor de dezenas de bafos no cangote, ‘gora silêncio, tempo congelado... suspensão.

É como se o fedelho sentisse a atmosfera rodar em seu redor. Vertigem de quem está no centro, mas também longe dele. A imagem esgarçada diz-lhe que desceu um bocado de morro. Tá tudo plano agora. Tem até uma coisa preta em que está pisando. A coisa preta é quente e queima seus pésinhos pelados. A gente que vinha atrás dele agora ‘tá tudo parada, estátuas paupérrimas, esfarrapadas, moribundas. O fedelho não é muito esperto, mas sabe que tem medo no olho da cada gente lá parada. É mais que medo, terror... mas... percebe, olham sim, não para ele, mas para além... para além dele.

Percebe então. Está no meio de uma coisa muito, muito ruim mesmo. É um comboio que vem lá. Viaturas negras, bichos de aço que cospem fogo por qualquer olhar feio. Aquela gente quer fugir, sabem que ajuntamento daqueles não é bem quisto pelos Da Cruz. Dispersam qualquer juntina de dois, ali tem um bocado mais que isso. Vivem um dilema, fugir já não dá mais... e ainda tem o jantar. Ninguém quer sair porque o último que ficar quem sabe assa o fedelho...

Mas tem o comboio. Os Da Cruz... não, não, há um engano, não são os civis, são seus irmãos, Os Polícia. De longe é difícil distinguir, são quase tudo mesma coisa. Mas é que os Polícia vão ali só por uma razão...

“É descarrego!” Grita o Pé de Peido. 

Pouco, mas há alívio. Quem sabe Os Polícia não encrenquem com aquela juntina. É só descarrego, lá no meio vem um, dois, três camburão. Mais gente p’ra Zona Livre. Gente de cadeia, todo mundo sabe, que não se mistura muito.

O fedelho continua ali, no meio. Entre as gentes e os Polícia. Tem a sensação, o Fedelho, de que por pelo menos um minuto todos eles param para pensar nos rumos. Enquanto isso ele ali, no meio, as gentes com as facas enferrujadas, gentes famintas, os Polícias em suas viaturas pretas... silêncio....

A suspensão da atmosfera é rompida com voosh voosh voosh que vem de algum lugar do céu, percebe o fedelho. A coisa preta contra o azul do céu, visto ali debaixo parece aquelas mutucas que tiram sangue tod’hora. 

“Evacuem a zona de entrega... evacuem a...” a coisa do céu grita. Parece lata que grita, pensa o fedelho.

A coisa fala só duas vezes e meia, antes da terceira chove fogo dela. O pipocar faz saltar pedacinhos da terra preta. Parece traçar uma linha pouco antes daquelas gentes aglomeradas.

Eles são obrigados a desistir do jantar. Em menos de dez segundos desaparecem pelo labirinto decaído. Parecem aquelas baratinhas que uma hora estão ali, um segundo depois desapareceram pelo ralo.

Agora são apenas Os Polícia e o Fedelho. As viaturas avançam, filhos da puta, a grandona, aquela dos pneus gigantes nem viu nada. Passou por cima, fazendo creck creck creck de fedelho. A porta do camburão se abre e algo é empurrado para fora. “Aproveita a liberdade, seu bosta”. Diz alguém dentro daquela coisa.

        Depois de despejar o que vieram despejar, o comboio da meia volta.  

        O degredado zonzo caminha cambaleante. Começa a subir o morro. Percebe que seus pés descalços estão sujos. Espana com a mão a meleca grudante que se emplastara juntando areia e algo viscoso.

        "Preciso encontrar chinelos", pensa.