Há um curioso conto de Ray Bradbury, "O pedestre" (in A cidade inteira dorme, Biblioteca Azul, 2013), em que um homem anda à noite nas ruas vazias da metrópole. Desejava ele caminhar por caminhar, tomar um ar, espairecer. Ocorre que em dado momento esse homem, o pedestre, é interpelado pela única viatura policial remanescente na pacífica civilização de 2053. A viatura falante, autônoma como noutra abordagem qualquer, questiona as motivações do Sr. Mead ficar andando pela rua. Como assim andando por andar? Como assim, o senhor não tinha de estar de fronte ao seu "tela-visor"?
O incrédulo Sr. Mead não consegue então convencer a viatura de que sim, caminha por caminhar, que não, não queria estar frente ao seu aparelho eletrônico. Tenta, mas não consegue convencer a viatura que força-o entrar no veículo para levar-lhe ao intrigante Centro Psiquiátrico de Pesquisa em Tendências Regressivas.
Ocorre que a leitura desse conto é um tanto interessante nos tempos contemporâneos de uso excessivo das telas, mais do que isso, posto, logo existo, curto, logo existo. Na entrada da terceira década deste século a presença enquanto consumidor - alguns ativos - mas a grade massa passiva das redes digitais é uma marca e um fato que tem dividido opiniões. Não, dividido é exagero, há entre nós - incluso este que vos escreve - que da utopia que se revelava a internet nasce o desencanto que ela tem se tornado, terreno fértil de todas nossas desgraças sociais e suspeita-se, cognitivas.
Esses reticentes agora cogitam mais tempo no "mundo real", "menos redes sociais". menos "mundo digital". Mas será possível ainda isso? Já não vivemos algo semelhante que evoca-nos a leitura da narrativa do Sr. Mead? Estranhos e excêntricos esses que se voltam ou que se preocupam com o excesso das telas, dos algoritmos, do que é digital? Não seremos nós, também embarcados numa viatura e candidatos a objeto de pesquisa do CPPTR?
É difícil andar contra a maré das massas, vide os grupos e fóruns quase religiosos de louvações às inteligências artificiais. Estaremos nós sendo retrógrados? Ou somos arautos de preocupações relevantes quanto ao nosso próprio futuro enquanto espécie? Por enquanto, aqui, seguimos ao lado do Sr. Mead.