Para quem serve a polícia? Entre a distopia e a narrativa policial, Sam Wilson faz crítica social


    A relação do brasileiro com a polícia é marcada pela desconfiança e mesmo pela oposição a ela. Entre outras produções de nossa cultura, entre as mais conhecidas, as canções dos Titãs "Polícia" e "Veraneio Vascaína" do Aborto Elétrico fizeram sucesso entre jovens de esquerda no Brasil. Nas vozes periféricas essa relação será ainda mais dramática. Tal problemática, inclusive, foi abordada pelo sociólogo Antonio Candido a partir da obra de Balzac:

O romancista tinha mais ou menos dezesseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.

    Ainda sobre os procedimentos policiais, especialmente a violência relacionada a suas práticas, teremos no crítico Walter Benjamim outra contribuição importante:

A afirmação de que os fins da violência policial seriam sempre idênticos aos do resto do direito, ou pelo menos teriam relação com estes, é inteiramente falsa. Pelo contrário, o “direito” da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar a qualquer preço. Por isso a polícia intervém “por razões de segurança” em um número incontável de casos nos quais não há nenhuma situação de direito clara; para não falar nos casos em que, sem qualquer relação com fins de direito, ela acompanha o cidadão como uma presença que molesta brutalmente ao longo de uma vida regulamentada por decretos, ou pura e simplesmente o vigia.

   Trago estas reflexões iniciais porque as considero interessantes, e mesmo relevantes na compreensão desta recente narrativa, O Assassino do Zodíaco. (Aqui um pequeno parenteses para que não se confunda a tradução do título no Brasil com os famosos crimes do zodíaco nos Estados Unidos). A obra é do autor Sam Wilson, que embora nascido em Londres, foi para o Zimbábue ainda criança, radicando-se posteriormente na Cidade do Cabo, na África do Sul. Nesta sua estréia na literatura, o autor além de mover-se por entre os limites dos gêneros, traz em seu romance fortes aspectos de crítica social que dialogam com nossos questionamentos iniciais.
     A polícia, por naturalidade está no centro das narrativas policiais. O gênero, aliás, desde seus primórdios ocupa grande espaço na predileção de seus leitores, vide o sucesso de autores como Agatha Christie e Sir Arthur Conan Doyle, ou a recente onda dos autores nórdicos como Stieg Larsson. Em comum a todos eles, nenhuma ruptura, tanto no modo mais clássico de se narrar histórias policiais ou nos romances noir, que a despeito das tragédias de seus detetives, a polícia inevitavelmente "exercia o bem, combatendo o mal" solucionando os crimes ao final de cada romance. Não é bem o que veremos em Sam Wilson, que produz uma obra que, aliás, conversa com a narrativa criminal brasileira, e assim a polícia é despida de um olhar mítico e aprovador, para ser vista com olhos críticos, audazes e duros.
     Um leitor mais ingênuo, poderá até mesmo cogitar estar diante simplesmente um romance policial, todavia, e aqui um detalhe interessantíssimo, essa quebra de expectativa será ajudada com o próprio hibridismo de gênero. O Assassino do Zodíaco tem crimes, sim, possui também um detetive que não faz feio ao lado de nenhum outro de sua espécie. O detetive Jerome Burton é um típico herói da corporação, de passado glorioso e cujo presente o aproximará cada vez mais de um detetive noir. Observar apenas estes detalhes nos atiram a pleno na narrativa policial, contudo a esse tempo, além da própria nota do autor, já teremos assimilado que tudo se passa numa possibilidade alternativa, numa América cuja sociedade está dividida por castas sociais a partir dos signos do zodíaco. Temos aí, portanto a fusão entre a distopia e a narrativa policial, e como Todorov alerta "embelezar o romance policial é fazer outra coisa, literatura".
       Bem, não temos então um clássico romance policial. Sam Wilson considera sua distopia sutil, entretanto, a sociedade alegórica que constrói, perceberá o leitor, fala muito mais de nossas desigualdades sociais do que as internas à narrativa. Assim, o departamento de polícia a qual pertence Burton está inserido numa realidade social degradada, marcada pela corrupção e pelo jogo de interesses a preservar as estruturas sociais vigentes, baseadas nos signos. O estranho protagonista, Burton, será uma amostra das hipocrisias contidas em tal estrutura, numa sociedade em que o determinismo é garantido por estruturas de poder ancoradas por dinheiro. A partir disso, enquanto Burton, e sua parceira astróloga Lindi, investigam uma série de assassinatos, o caos social, as contradições e perversões de toda estrutura social vão sendo expostas ao leitor de modo que paulatinamente a obra desnudará a quem de fato serve a instituição polícia. Tudo isso leva a um apoteótico desfecho mergulhado no caos urbano e social representado pelo distúrbio que deixará claro qual a função policial, pelo menos sob os olhos desta narrativa. Aí a distopia já avançou e muito sobre o romance policial, e a crítica social, fica clara.
       Enfim, a grande virtude deste romance está em seu poder de atração popular, que fisga seus leitores aficionados há muito pelas narrativas de detetive. Todavia, ele vai para além disso, sob sua superfície com muita ação e reviravoltas inerentes aos thrillers, há uma poderosa crítica social que reforça o papel policial com murada forte das estruturas sociais dominantes, que com fúria salivante não se permitem a qualquer reflexão, e fazem de seus cassetetes e armas ferramentas para a perpetuação da desigualdade, ao passo que os oprimidos são rechaçados com violência e bomba, não se lhes permitindo, no caso do romance, nem mesmo vozes de representatividade. É, portanto, um olhar do ponto de vista de quem sofre a opressão, de quem mantem o pé atrás com os que portam distintivos, e que promove um "casamento" repleto de afinidades entre o romance policial e a distopia. 


Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. Tradução: Celeste Ribeiro de Sousa... [et al.]. São Paulo: Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1986. 
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. 
________________. A Verdade da Repressão. Opinião nº 11, 15-22, I, Rio de Janeiro, 1972.