A caveira ou formas de dizer adeus!


Adamastor tivera pesadelos durante seu sono inteiro. Mas nenhum deles era mais pavoroso quanto à realidade daquela manhã de outono. Para iniciar, seus olhos não existiam, e por mais ridículo que fossem aqueles glóbulos redondos encravados em sua face, sentiu saudades. Por algum motivo alheio ao seu conhecimento, suas carnes, seus músculos, suas vísceras... não existiam mais... 

Acordou apenas ossos e espírito. Um grudado ao outro, como as raízes grudam-se à terra fofa em busca de alimento e sobrevivência. A primeira intenção foi gritar. Ele até tentou, mas não havia mais cordas vocais para ecoar seu medo. Percebeu o fato ao ouvir o ranger de ossos, sem os líquidos corporais para lubrificá-los. Sentia-se estranho, de alguma forma, pesado, e ao mesmo tempo leve, sem o peso habitual da massa que cobria seus ossos. Tentou gritar ao ver suas mãos, apenas em ossos...

Tentou pedir ajuda. Mas ninguém o ouvia. Isabel devia estar na cozinha preparando o café das crianças. Pensou em ir até ela. Mas como explicar sua nova forma. Um esqueleto vivo. Apenas ossos. A face firme e charmosa que encantara sua esposa deixara de existir. “Ela não entenderia”. Pensou ele, com lamentação. Além disso, poderia ser temeroso uma aparição abrupta, sem que sua mulher estivesse preparada para tal.

Sentou-se à cabeceira. Precisava de um tempo para pensar no ocorrido. Não havia muito, pois sabia que Isabel não demoraria na cozinha. Devia ter não mais que dez ou quinze minutos. A primeira questão era saber para onde teria ido sua massa corporal? Quem ou o quê seria capaz de tal façanha? E como Isabel não percebera, ao acordar, que ao invés do rosto com o qual passara uma década, jazia apenas uma caveira? Ou então, talvez tudo tivesse ocorrido após o despertar de sua companheira?

Mas, e se Isabel tivesse alguma relação com o acontecido. Nunca se pode subestimar uma mulher, e por mais calmo que o mar do casamento se encontre, basta uma pequena nuvem para iniciar uma tempestade. Sua teoria poderia até fazer sentido, já que nenhum grito de pavor, um desmaio, ou qualquer pedido de ajuda partiu de sua esposa para socorrer-lhe. Como poderia ela ter sido tão insensível com seu problema, se fosse inocente? “Não!” Ele não podia se conformar com tal hipótese e mesmo acreditar que aquela mulher pudesse lhe causar tanto mal.

Eram tantas suas indagações que o tempo escorria, como a areia que não se aprisiona entre as mãos. A pergunta vital para tudo era de como ele ainda poderia estar vivo, se apenas restavam seus ossos? Sim ele estava vivo. Como poderia não estar, se o aroma de café passado invadia o ambiente... Como conseguia sentir os lençóis entre seus dedos, mesmo que forma mais áspera... E a dor? Como explicá-la?

Morto? Não. Esta ideia não lhe passava sobre a mínima hipótese. Afinal, que morte seria aquela, capaz de levar suas carnes e todo resto em apenas uma noite? Seria então alguma experiência cientifica? Algum ataque terrorista com gases venenosos? “Não, no Brasil não existe tal problema”. Disse para si mesmo.

Se dos ossos vertessem lágrimas, delas Adamastor estaria coberto. Tamanha era a vontade de chorar. Deu um leve cutucão no crânio em busca de mais uma resposta. E o ato trouxe-lhe mais perguntas. O som vazio e oco confirmara-lhe que sequer seu cérebro continuava a existir. Mas como explicar suas emoções... Suas lembranças...

Elas estavam vívidas e coloridas. O beijo da pequena Márcia. O abraço de Gabriel. Ele os amava. Mas como poderia chegar-lhes e mostrar no que seu pai se transformara. Pensou em fugir pela janela. Mas não podia fazer isto com Isabel. Ele a amava muito para partir sem deixar rastros... Mesmo que tivesse motivos suficientes para isso.

Dez anos e sequer uma briga. Ambos se complementavam. Assim como na noite anterior. Amaram-se como há algum tempo não faziam. Permitiram-se a arroubos juvenis. Teria sido aquela ultima noite de amor, uma despedida? Talvez. Caso não encontrasse uma solução para seu problema, Adamastor tinha certeza que sua família deixava de existir, assim como suas carnes.

A algazarra dos dois, naquela segunda-feira, lhe parecia incomum. Mas não era. O homem nunca tivera tempo suficiente para perceber a alegria dos pequenos ao retornar ao colégio após um final de semana, separados de seus coleguinhas e amigos. Adamastor tinha espaço apenas para a memória dos tempos de mais velho, onde a segunda tornava-se um verdadeiro martírio, principalmente depois que se faz necessário trabalhar.

Trabalho. Havia tanto por fazer naquele dia. Uma reunião com o setor de produção às dez... Ao meio-dia encontro com o presidente da empresa e à tarde visitar algumas filiais... A rotina de gerente não era fácil. Mas era o que lhe proporcionava a oferecer uma vida estável a sua família. Ele tinha de comunicar seu superior. Mas como? Por telefone não poderia ser. Talvez por e-mail. Mas o computador estava na sala. Ele não podia arriscar um encontro com sua esposa pelos corredores. 

O esqueleto ambulante resolveu levantar-se da cama macia, que por tantos anos lhe trouxera felicidade. Contemplou-a com saudade. Uma sensação tão nítida quanto os tijolos que erguiam aquela casa, lhe dizia que não voltaria a ver aquele espaço de confidências e de troca de carícias. Nele se tomavam as principais decisões da família. Um recôndito de intimidade onde os dois podiam esquecer os problemas que existiam fora de suas paredes. Mas naquela manhã, tudo ficou mais distante, e não poderia fazer nada para mudar seu atroz destino. Pelo menos, até que pudesse descobrir o que realmente lhe acontecera.

Com passos marcados pelo som dos ossos de seus pés tocando o piso gélido, Adamastor criou coragem para ir até o banheiro. Um espelho em meia parede revelou sua figura mortificada. Seu crânio vislumbrava o oco onde antes se fixavam olhos. Ele gritou... gritou... tão alto que se suas cordas vocais ainda existissem, teriam se rompido no mesmo instante. Mas restavam apenas ossos, como ele bem pode confirmar em frente ao espelho. Seu grito rompeu apenas seu espírito, pois aquele pobre moribundo podia ser ouvido apenas por si mesmo.  

Depois de tantas divagações, devaneios, pensamentos inconclusos e minutos transpostos frente aquele espelho, medonho pela imagem refletida, um batom de Isabel sobre a pia serviu de ideia. A única possível. A fuga. Artifício muito utilizado e às vezes útil quando grandes problemas nascem. Noutras apenas a postergação da tomada de alguma decisão ou atitude. De qualquer forma, ambas lhe cabiam naquele momento, pois mesmo que apenas postergasse seu dilema, poderia ganhar tempo para buscar respostas ao que lhe acontecera.

“Querida Isabel, coisas estranhas caíram sobre mim e juro-te por toda a felicidade que vivemos até hoje, que precisei partir. Acredite sempre no que vivemos e, principalmente, que voltarei qualquer dia desses. Não posso explicar mais, você não poderia entender. Porém tudo o que fiz, foi por nossa família. Eu te amo.” Suas mãos, sem o tato habitual, desenharam a mensagem com batom em letras tortas. Ele sabia que sua fuga traria dor e sofrimento, bem como, sabia que um fardo muito maior seria mostrar-se a Isabel naquela forma inumana.

“Se for tudo um sonho, acordarei...” Pensou otimista, o defunto vivo. Mas não era. E a confirmação se deu quando a porta se entreabriu e uma voz doce lhe dirigiu a palavra: - Querido, está na hora de levar as crianças pro...

Ao se deparar com a criatura aterradora, Isabel não aguentou. Primeiro ecoou um grito pavoroso, capaz de alarmar toda a vizinhança. Também pudera. Qual ser humano, homem ou mulher, suportaria entrar em seu quarto e ver um esqueleto caminhando em círculos como se pensasse alguma traquinagem. Quando a face esquelética percebeu sua presença, e virou-se fixando sua atenção para Isabel, a mulher não resistiu, caindo no chão, dura como uma pedra. 

O esqueleto foi ao seu encontro. Isabel precisava de ajuda. Adamastor não podia negar-lhe socorro. Ao se aproximar, sentiu o frio que deslizava sobre o corpo de sua companheira e a respiração que se esvaia como poeira ao vento. Isabel morria lentamente. Então a caveira de Adamastor sentiu o escorregar de um líquido. Ele olhou os braços ósseos que seguravam sua amada, e viu a carne renascendo em seu corpo. Como Encanto, a maldição que lhe transformara em esqueleto foi se desfazendo ao passo que a vida de Isabel partia. Como se ambas as coisas estivessem interligadas, a vida que lhe voltava ao corpo, se dissipava em sua mulher. Quando os pequenos chegaram ao quarto ver o que acontecia, seu pai segurava aos prantos, o corpo de sua falecida mãe.